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8 de março de 2016 - ed. 349

A mulher e magistrada, Eliana Calmon
 

Alguém que nunca se acomodou e não deixou de lutar por mudanças, Eliana Calmon foi a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A jurista baiana também ocupou o cargo de corregedora nacional de Justiça e de diretora-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

Nascida em Salvador, filha de empregada doméstica e de um microempresário, a ministra é a filha mais velha de três irmãos. Na infância, já demonstrava temperamento forte e, com apenas 15 anos, já havia decidido o que seria. “Sempre gostei muito de discursar e, desde o primário, eu me destacava. Falava em nome da turma e saldava a professora, de forma que isto, talvez, tivesse me influenciado. Meu pai sempre dizia que eu daria uma boa advogada”, recorda.

Em 1968, Eliana se formou em direito, no ano seguinte se casou e foi em busca de concursos públicos. Com dificuldades, ela se dispôs a oferecer seus serviços em um estágio ou um trabalho sem remuneração para conseguir exercer uma atividade na área jurídica. Então, ocorreu um fato, considerado pitoresco pela magistrada. “Conheci uma juíza federal, que era a primeira juíza federal do Brasil. Ela se chamava Maria Rita Soares de Andrade e tinha sido nomeada pelo Marechal Castelo Branco. Conheci o irmão dela, e ele me levou até ela”, lembra.

Ao saber que a ministra Eliana tinha apenas um mês de casada, a juíza mandou que a jovem advogada fosse tomar conta de seu marido e ter filhos, e sentenciou que essa vida com a qual a ministra sonhava não seria fácil. “Eu fiquei muito chateada, nunca mais a procurei. O tempo passou, e eu também me tornei juíza federal. Maria Rita, já aposentada, foi à Bahia fazer uma visita à Justiça Federal. Eu, como diretora do fórum, a recebi. Naquele momento, ela me disse uma coisa que eu achei interessantíssima: ‘Eliana, quando você chegou à minha frente, eu vi em você uma mulher que eu queria ser, uma mulher casada, que estivesse em condições de formar uma família, porque no fundo, me tornei uma profissional porque meu noivo morreu às vésperas do casamento e eu não consegui mais me casar nem ter filhos, que era a minha vocação’”, relembra a ministra.

“As mulheres mudaram. Eu sou juíza federal, casei-me e tenho um filho. A gente pode conciliar as coisas, ser profissional e mãe de família”, Eliana destacou na época.

Divisor de águas

Outro ponto marcante na vida da ministra aposentada foi um congresso para mulheres, realizado na China em 1996. As brasileiras começaram a olhar o que tinham de material para levar a esse congresso e descobriram que as mulheres do legislativo e do executivo conseguiam postos de mando, ou seja, chegavam ao topo da carreira. Tornavam-se secretárias, ministras de estado, deputadas e senadoras, mas quando chegavam ao Judiciário por concurso público, à medida que iam subindo dentro da hierarquia, diminuía e rareava o número de mulheres que chegavam aos tribunais.

Naquela época, não se tinha um registro disso, as participantes só descobriram quando começaram a pegar o material. A partir dali, vários grupos feministas foram ao presidente da República para que ele assumisse o compromisso de nomear mulheres dentro dos tribunais superiores.

“A gente sempre pensa que a primeira mulher que chegou, chegou porque foi mais inteligente que as outras, mais sabida que as outras ou por um componente político mais influente para chegar a um tribunal, mas não é bem assim”, argumenta a ministra.

O presidente assinou o documento, que não tinha um valor oficial, mas de qualquer forma era uma promessa. Aquele congresso foi realizado em 1998, e em 1999 o chefe de Estado nomeou a primeira mulher para um tribunal superior: Eliana Calmon.

Com os olhos cheios de lágrimas, ela descreve o momento da posse. “Quando chamaram meu nome e eu entrei, parecia que o Plenário vinha abaixo. Havia diversos movimentos feministas, todos eles com uma faixa de identificação, aplaudindo de pé. Foi uma coisa linda! Eu fiquei extremamente emocionada! Isso realmente me deu a dimensão do que aquilo significava para a sociedade brasileira, me deu a responsabilidade de estar ali representando um segmento, fez com que eu tivesse muita preocupação com todas as minhas atitudes dentro do STJ. Nunca me esqueci disso!” revela.

A ministra também explica porque assumiu uma atitude um pouco agressiva durante sua atuação no Tribunal. “Por causa do meu temperamento e porque eu entendi que não poderia fraquejar em nenhum momento. Dali por diante, se houvesse uma fragilidade da minha parte, eu, como representante da mulher, estaria traindo aquela confiança que foi depositada em mim”, compartilha.

Cozinhar, um prazer

Basta passar alguns instantes no sofá da sala da jurista para perceber seu amor por coisas de casa e decoração. Mãe de um filho e avó de dois netos, a ministra separou um cantinho especial da casa para os pequenos exporem suas obras de arte.

Quando o assunto é hobbie, Eliana diz que é muito feminina e revela que é cozinheira. “Eu tenho um prazer enorme! Quando estou fazendo uma festa, gosto mais dos preparativos do que a hora da festa”, confessa.

Para ela, cozinhar é uma vocação. “Nas primeiras vezes em que eu falava que gostava de cozinha, havia uma certa reação das pessoas. Em 1995, quando escrevi o primeiro livro, muita gente torcia o nariz para o fato de eu gostar de cozinhar. Decidi enfrentar os preconceitos e escrevi um livro de receitas, que já está em sua décima edição”, declara.

Na apresentação da obra, a ministra destacou que, “assim como minha avó não teve oportunidade de escolher qual a sua vocação, que era sempre ser doméstica, hoje, a mulher está sendo empurrada para o mercado de trabalho, às vezes sem qualquer vocação, se abdicando de tantas coisas boas relacionadas a ser mulher. Gostar de decorar, de arrumar uma mesa, de ser uma cozinheira”, brinca.

O livro contém receitas rápidas e fáceis, além de opções de cardápio sem glúten e algumas dicas de cozinha, decoração de mesa e uma atenção especial para quantidades. “Eu o chamo de livro para mulheres modernas, ocupadas e sem tempo”, afirma.

O nome da obra também esconde uma curiosidade. Foi escolhido por um funcionário de seu gabinete e aprovado pela autora. “REsp - Receitas Especiais, é fruto de um trocadilho, já que, na linguagem jurídica, REsp significa recurso especial, o meio processual para contestar, perante o STJ, uma decisão judicial proferida por tribunais estaduais ou federais.  As pessoas pensavam que eram receitas para interpor um REsp e, quando abriam, descobriam que eram receitas culinárias”, pontua.

Eliana Calmon doou os direitos autorais de REsp - Receitas Especiais  a uma instituição de caridade. Contudo, no seu aniversário de 70 anos, a ministra pediu autorização e fez uma edição especial do livro para presentear os convidados da festa.

A ministra garante que a satisfação de estar na cozinha é a mesma de estar no STJ. “Não posso nem dizer qual é a mais agradável, porque realmente eu sinto um prazer enorme em ambas. Receber uma pessoa na sua casa e oferecer as coisas que fez é uma espécie de entrega aos seus convidados”, compara.

Nada a acrescentar

Eliana Calmon garante que se pudesse voltar no tempo, faria tudo da mesma maneira. “Eu tenho uma vida completa! Fui muito feliz em todas as minhas escolhas. Eu tinha muito medo da minha aposentadoria, porque me entreguei muito ao trabalho, vivenciei profundamente os 14 anos que passei dentro do STJ, com uma atividade muito intensa. Para me aposentar, me preparei-me psicologicamente. Eu não sabia o que fazer, qual caminho tomar, mas sou uma aposentada feliz. É como se eu tivesse esgotado uma etapa da minha vida”, conclui.

 

  

 

Reportagem: Josiane Ricardo

Edição: Karla Bezerra

Fotos: Sérgio Amaral

Revisão de português: Larissa Rocha 

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