EAREsp 1.766.665-RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, Rel. para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Corte Especial, por maioria, julgado em 3/4/2024.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Incide a preclusão consumativa sobre o montante acumulado da multa cominatória, de forma que, já tendo havido modificação, não é possível nova alteração, preservando-se as situações já consolidadas.
A controvérsia diz respeito à ocorrência de preclusão sobre decisão que revisa o valor de astreintes. Sobre tema, a Corte Especial, no julgamento do EAREsp n. 650.536-RJ, firmou o entendimento de ser possível a redução quando o valor for exorbitante, levando-se em conta a razoabilidade e a proporcionalidade, e a fim de evitar o enriquecimento sem causa do credor.
No entanto, a questão demanda reflexões mais aprofundadas, especialmente porque essa decisão, muito embora tenha sido proferida sob a égide do CPC atual, baseou-se especialmente em jurisprudência majoritária construída à época em que vigia o CPC/1973, com destaque para o Tema Repetitivo n. 706: "A decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada" (REsp n. 1.333.988/SP, Segunda Seção, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 11/4/2014).
Além disso, não se levou em consideração que o CPC/2015 alterou substancial e expressamente o regime jurídico das astreintes no tocante à possibilidade de modificação. Com efeito, de acordo com a premissa estabelecida no julgamento do EAREsp n. 650.536-RJ, a regra que permite ao magistrado alterar a multa cominatória estaria prevista no art. 461, § 6°, do CPC/1973 e no seu correspondente, art. 537, § 1°, do CPC/2015. Todavia, há uma diferença substancial entre essas duas regras, em particular no que diz respeito a quais valores podem ser modificados.
A partir da análise dessas regras supracitadas, percebe-se a nítida intenção do legislador de autorizar a revisão ou a exclusão apenas da "multa vincenda", ou seja, a decisão não pode ter eficácia retroativa para atingir o montante acumulado da multa. Por outro lado, há quem sustente a possibilidade de decisão com efeitos retroativos no caso de redução do montante da multa que já incidiu, pois a expressão "vincendas" diria respeito apenas à multa que está incidindo.
Contudo, não há motivo para submeter a modificação e a exclusão a regimes jurídicos diversos. A regra do art. 537, § 1°, do CPC deixa claro que o legislador optou por preservar as situações já consolidadas, independentemente de se tratar da multa que está incidindo ou do montante oriundo da sua incidência. Analisando a questão com mais profundidade, tem-se que a pendência de discussão acerca do montante da multa não guarda relação com o seu vencimento, mas, sim, com a sua definitividade.
Dessa forma, se a incidência da multa durante o período de inadimplência alcança valores exorbitantes, seja porque o devedor permaneceu inerte e não requereu a revisão ou exclusão, seja porque o magistrado não agiu de ofício, qualquer decisão que venha a ser proferida somente poderia provocar, em regra, efeitos prospectivos.
Percebe-se que o legislador do CPC/2015 optou por levar em consideração a postura do devedor, a fim de premiar aquele que, muito embora inadimplente num primeiro momento, acaba por cumprir a obrigação, ainda que parcialmente, ou que demonstra a impossibilidade de cumprimento. Significa dizer que somente tem direito à redução da multa aquele que abandona a recalcitrância.
Desse modo, a partir da regra expressa do art. 537, §1°, do CPC, somente seria possível alterar o valor acumulado das multas vincendas e, consoante disposto no inciso II, a redução exige postura ativa do devedor, consubstanciada no cumprimento parcial da obrigação ou na demonstração de sua impossibilidade.
De qualquer sorte, na hipótese, há outro óbice para a revisão pretendida, qual seja a preclusão pro judicato consumativa, pois já havia sido revisado o valor da multa diária.
O STJ sedimentou, por meio de recurso especial julgado na sistemática dos repetitivos, que "a decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada" (Tema 706), conforme já anotado. Trata-se, no entanto, de não incidência de preclusão temporal, de forma que o valor da multa pode ser modificado a qualquer tempo. Não se trata de ausência de preclusão consumativa, sob pena de grave violação da segurança jurídica.
Dessa forma, uma vez fixada a multa, é possível alterá-la ou excluí-la a qualquer momento. No entanto, uma vez reduzido o valor, não serão lícitas sucessivas revisões, a bel prazer do inadimplente recalcitrante, sob pena de estimular e premiar a renitência sem justa causa. Em outras palavras, é possível modificar a decisão que comina a multa, mas não é lícito modificar o que já foi modificado.
Considerando que a multa cominatória é um importantíssimo instrumento para garantir a efetividade das decisões judiciais e pode ser fixada de ofício, trata-se de matéria de ordem pública. No caso, a multa fixada em sentença transitada em julgado pode ser alterada na fase de execução porque tem natureza de técnica processual, de modo que não é acobertada pela coisa julgada material. Uma vez fixada ou alterada no início da execução, mantém tal natureza e, portanto, pode ser modificada a qualquer momento, inclusive de ofício.
Todavia, o valor acumulado da multa deixa de ser técnica processual e passa a integrar o patrimônio do exequente como crédito de valor, perdendo a natureza de matéria de ordem pública. Com efeito, nos termos do art. 537, § 2°, do CPC, "o valor [acumulado] da multa será devido ao exequente".
Além disso, mesmo se considerada também a multa acumulada como matéria de ordem pública, deve incidir a preclusão pro judicato consumativa, de forma que, tendo havido modificação, não é possível nova alteração, preservando-se as situações já consolidadas, como deixa claro o art. 537, § 1°, do CPC ao se referir a "multa vincenda". Isso porque há preclusão consumativa em relação às questões de ordem pública, inclusive àquelas que estão fora da esfera de disponibilidade das partes, tais como os pressupostos processuais e as condições da ação, conforme entendimento sedimentado no STJ.
Assim sendo, e com maior razão, há preclusão consumativa no tocante ao montante acumulado da multa cominatória, pois ostenta natureza patrimonial e disponível.
RMS 72.573-SP, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 20/2/2024, DJe 23/2/2024.
DIREITO ADMINISTRATIVO
A penalidade de suspensão prevista no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo, por si só, não incompatibiliza o servidor estadual para nova investidura em cargos públicos.
No caso em análise, foi informado que a recorrente, nomeada para o cargo de Escrevente Técnico Judiciário, teve sua posse negada pela autoridade impetrada "por conflito com o interesse público, não estando satisfeito o art. 47, V, da Lei n. 10.261/68, restando prejudicada sua nomeação".
O apontado ato coator encampa as razões declinadas nos pareceres que o antecedem e invoca, como amparo legal, o previsto no art. 47, V, da Lei Estadual n. 10.261/1968, norma que encerra a seguinte redação: "Artigo 47 - São requisitos para a posse em cargo público: [...] V - ter boa conduta". Assim, segundo a Administração, o fato de a candidata ter sofrido a penalidade de suspensão por mau comportamento, verificado entre 27 de abril e 2 de maio de 2019, seria, por si só, suficiente para lhe infirmar, quatro anos depois, maio de 2023, o atendimento ao requisito legal da boa conduta.
Ocorre que a exegese desse teor, limitada à interpretação de um único artigo de lei, sem mesmo considerar o sistema normativo em que se insere, pode conduzir, como se verifica na espécie, a entendimento errôneo no que concerne à razão da lei. Daí que, como bem ressaltado na manifestação do Parquet federal, "a conduta reprovável da ora recorrente, no exercício das atribuições de investigadora de polícia, deve ser vista com cautela, a fim de se evitar arbitrariedades".
Com efeito, a prevalecer a compreensão administrativa adotada no caso, a norma existente no art. 307, caput, parágrafo único, do mencionado diploma estadual (Lei n. 10.261/1968 - Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo) resultaria de impossível aplicação.
Segundo o dispositivo, apenas as penalidades de demissão, ou de demissão a bem do serviço, podem impedir, por maior ou menor prazo, a nova investidura em outro cargo. As demais penalidades, inclusive a suspensão, são desconsideradas para quaisquer outros efeitos, salvo em caso de nova infração pelo período de cinco anos.
Ao fim e ao cabo, vislumbra-se que, à luz da combinada exegese dos arts. 47 e 307 da Lei Estadual n. 10.261/1968 (Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo), a pretérita penalidade de suspensão imposta à candidata recorrente, em outro cargo público estadual que antes ocupava, por si só, não a incompatibiliza para nova investidura em cargo diverso no âmbito de novo concurso público.
Revela-se, pois, carente do necessário amparo legal a negativa de nomeação da candidata nas circunstâncias vertidas no ato impetrado, justificando-se a reforma do aresto recorrido e a concessão da ordem para determinar a posse da autora no cargo para o qual foi aprovada e, inclusive, chegou a ser nomeada num primeiro momento.
AREsp 1.033.647-RO, Rel. Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024, publicado em 8/4/2024.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Compete exclusivamente ao órgão prolator da decisão, que altera jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou que altera jurisprudência oriunda de julgamento de casos repetitivos, modular os seus efeitos com fundamento no art. 927, § 3º, do CPC.
Na origem, o feito decorre de mandado de segurança ajuizado contra ato do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), objetivando a liberação de caminhão apreendido por agentes da autarquia por transportar madeira sem licença. Após a interposição do recurso especial, os autos retornaram à origem para juízo de conformação, em razão da apreciação dos temas repetitivos 1036 e 1043 do Superior Tribunal de Justiça.
Recebidos os autos na origem, o Tribunal a quo manteve acórdão recorrido, concluindo que "apesar de não ter havido qualquer modulação dos efeitos para aplicação dos referidos Temas 1036 e 1043 pelo Superior Tribunal de Justiça, é necessário que sejam resguardadas as situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, tendo em vista a impossibilidade ou dificuldade de se fazer cumprir ordem de apreensão de veículos há muito tempo liberados por decisão judicial, em razão de um novo entendimento jurisprudencial formado a partir da alteração de entendimentos anteriormente aplicados pela própria jurisprudência dos Tribunais".
O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, já afirmou que cabe ao juízo prolator do julgamento decidir sobre a modulação dos seus efeitos. Tal orientação já foi aplicada para reputar ilegítimo, no que se refere a acórdãos proferidos em controle concentrado de constitucionalidade, que a modulação seja feita por outro órgão que não o Supremo Tribunal Federal.
Nesse diapasão, o STJ entende que "somente o órgão prolator que promove a alteração do entendimento jurisprudencial é que pode decidir sobre as consequências de seu julgado, de modo que, no presente caso, não compete a esta Corte Superior deliberar sobre a necessidade de modulação de efeitos de acórdão prolatado em controle concentrado de constitucionalidade pelo Pretório Excelso" (AgInt no AREsp n. 1.044.360/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 10/8/2020, DJe de 14/8/2020)
Dessa forma, conclui-se que compete exclusivamente ao órgão prolator da decisão, que altera jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou que altera jurisprudência oriunda de julgamento de casos repetitivos, modular os seus efeitos com fundamento no art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que: "Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".
Tal conclusão não impede, contudo, que o julgador do caso análogo sucessivo ao precedente aprecie, como é da essência do julgamento em concreto, os fatos de cada causa. Nessa apreciação, estabelece a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, respectivamente em seus arts. 20 e 23, que o julgador dever considerar as consequências práticas de sua decisão, bem como que, no momento de aplicar novo dever ou condicionamento de direito, estabeleça um regime de cumprimento proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
No caso dos autos, o Tribunal de origem restringiu os efeitos de um precedente que o Superior Tribunal de Justiça não modulou, e o fez sem observar as previsões da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, porquanto, em vez de aludir a fatos concretos, concluiu, abstratamente, que o decurso do tempo presumiria "a impossibilidade ou dificuldade de se fazer cumprir a ordem de apreensão de veículos há muito tempo liberados por decisão judicial".
REsp 2.099.521-ES, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024, DJe de 9/4/2024.
DIREITO ADMINISTRATIVO
A operadora de plano privado de saúde odontológica deve obrigatoriamente registrar-se perante o Conselho Regional de Odontologia em cuja jurisdição esteja estabelecida ou exerça as suas atividades.
A controvérsia resume-se em saber se a recorrente, operadora de plano privado de saúde odontológica, tem obrigação de registrar-se perante conselho profissional e, ainda, se esse conselho deve ser o da sua sede ou igualmente aquele em que presta o seu serviço.
O Superior Tribunal de Justiça examinou controvérsia semelhante aqui nesta Segunda Turma quando nela ainda integravam os Em. Ministros Eliana Calmon e Castro Meira, ocasião em que julgamos o REsp 1.183.537/RJ e reconhecemos a obrigatoriedade desse registro: "(...) 2. Após a vigência da MP 2.177-44/2001, as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, seja em que modalidade for, estão submetidas às disposições contidas na Lei 9.656/98.3. O art. 8º, I, da Lei 9.656/98 exige registro perante os Conselhos Regionais de Medicina e Odontologia, conforme o caso, como condição para obter autorização de funcionamento, das empresas que operam com PLANOS ou com SEGUROS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE.4. Recurso especial não provido.(REsp n. 1.183.537/RJ, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 11/5/2010, DJe de 30/9/2010."
AREsp 2.009.461-PA, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024, DJe 8/4/2024.
DIREITO INTERNACIONAL, DIREITO TRIBUTÁRIO
As mercadorias originárias, para serem beneficiadas pelo tratamento tributário preferencial previsto art. 4º da Resolução n. 78, de 1987, que aprovou o Regime Geral de Origem para a ALADI, devem ter sido expedidas diretamente do país exportador para o país importador.
O Direito Tributário Internacional não se preocupa única e exclusivamente com as hipóteses de dupla tributação sob a perspectiva jurídica (identidade do sujeito em relação a duas soberanias) e econômica (sobreposição de tributos em que a identidade do objeto pode coexistir com a diversidade de sujeitos). Tem por escopo também superar problemas de dupla não-incidência tributária (double non-taxation), compreendida como o fenômeno pelo qual, nas relações entre dois ou mais países, cujas leis tributárias são potencialmente aplicáveis a uma certa situação da vida, esta não é efetivamente abrangida por nenhuma delas.
A dupla não-incidência tributária, assim, pode decorrer da (1) inexistência de tratados internacionais tributários e de normas tributárias internas; (2) de previsões expressas em tratados internacionais, revelando a intenção de soberanias em não tributar determinado fato imponível; ou pode se dar (3) nas situações em que, apesar de atribuída a competência exclusiva para tributar, um dos países acaba por não a exercer, (3.a) seja por razões de lei interna (imunidade, não incidência e isenção), (3.b) seja por conflito de interpretação do tratado ou da lei interna.
Ademais, o Direito Tributário Internacional procura enfrentar o planejamento tributário agressivo (aggressive tax planning), consistente na utilização de estratégias por corporações para explorar lacunas e incompatibilidades entre sistemas tributários de dois ou mais países, por meio da manipulação de elementos de conexão para transferir lucros para locais com pouca ou nenhuma relação com a atividade econômica, com vistas à redução ou à anulação da carga tributária.
Nesse caminho, a interpretação ampliativa de benefícios tributários previstos em acordos internacionais aos casos de triangulação comercial possibilita a criação de aberturas para práticas abusivas de elisão fiscal, configurando incentivo à indesejada seletividade corporativa quanto ao tratamento tributário, em prejuízo às funções redistributivas e concorrenciais dos tributos e em contrariedade aos objetivos da OCDE em relação à tributação internacional. Por conseguinte, impõe-se a observância dos estritos termos da intenção dos países signatários de acordo internacional para fazer jus à obtenção de benefício tributário.
Conforme dispõe o art. 4º da Resolução n. 78/1987, que aprovou o Regime Geral de Origem para a ALADI, as mercadorias originárias, para serem beneficiadas pelo tratamento tributário preferencial, devem ter sido expedidas diretamente do país exportador para o país importador. Dessa forma, as mercadorias transportadas não podem passar pelo território de países não signatários dos acordos firmados no âmbito da ALADI e, quando em trânsito por um ou mais países não participantes, o trânsito deverá ser justificado por motivos geográficos ou por considerações referentes a requerimentos do transporte; não estejam destinadas ao comércio, uso ou emprego no país de trânsito; e não sofram, durante o transporte e depósito, qualquer operação diferente da carga e descarga ou manuseio para manter as mercadorias em boas condições.
Ademais, o Acordo 91 do Comitê de Representantes da ALADI, que disciplina a certificação da origem, no art. 1º, preconiza a coincidência entre a descrição dos produtos em declaração de importação, o produto negociado e a descrição constante em fatura comercial que acompanha os documentos em despacho aduaneiro. Assim, conquanto a triangulação seja prática comum no comércio exterior, não se vislumbra o cumprimento dos requisitos para a concessão do favor fiscal em específico, em virtude da divergência entre a certificação de origem e a fatura comercial, decorrente da exportação dos produtos de origem venezuelana por terceiro país não signatário dos acordos firmados na ALADI.
Dessa forma, a certificação da origem deve atestar a procedência real da mercadoria, de modo a não ser viável que a expedição direta do país exportador para o país importador seja flexibilizada em função de uma conveniência comercial destinada à redução de custos de maneira fictícia, especialmente quando não for expressamente mencionada no texto normativo. Assim, não é possível estender tratamento tributário privilegiado em relação ao imposto de importação, nos casos em que a exportação é feita por subsidiária situada em país não signatário dos referidos acordos, sob pena de interpretação extensiva de isenção tributária, o que afronta o art. 111, II, do CTN.
EDcl no AgInt no REsp 2.027.768-PE, Rel. Ministro Teodoro Silva Santos, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024, DJe de 9/4/2024.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
A seleção de recursos especiais como representativos da controvérsia pela Comissão Gestora de Precedentes não importa em suspensão automática dos recursos em trâmite no STJ.
O caso em discussão decorre de embargos declaratórios em que a parte embargante aponta a necessidade de sobrestamento do feito, em razão da seleção de 4 (quatro) Recursos Especiais pela Comissão Gestora de Precedentes do STJ, recursos estes que ainda se encontram em processo de afetação no Superior Tribunal de Justiça.
Deve ser rejeitado, contudo, o pleito de suspensão do processo, fundamentado no simples fato de a Comissão Gestora de Precedentes ter selecionado como representativos da controvérsia Recursos Especiais, pois tal circunstância não importa na suspensão automática dos recursos em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, ante a ausência de previsão legal nesse sentido. Precedente: AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.133.443/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 17/2/2023.
Ademais, esta Corte já afirmou que: "[...] nos termos da jurisprudência dominante desta Corte Superior, a suspensão de recurso especial com indicativo de representativo de controvérsia para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos não é obrigatória (...) (STJ, AgInt no REsp n. 2.007.847/CE, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe de 31/3/2023".
REsp 2.106.786-PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024.
DIREITO CIVIL
O ato do indivíduo de contratar um seguro sobre a vida de outrem com a intenção de ceifar a vida do segurado impede o recebimento da indenização securitária por quaisquer dos beneficiários e gera nulidade do contrato.
O propósito recursal consiste em definir se, no contrato de seguro sobre a vida de outrem, a morte do segurado causada por ato ilícito do contratante obsta o recebimento da indenização securitária pelos demais beneficiários do seguro. Na espécie, a contratante do seguro ajustou seguro sobre a vida de seu esposo e colocou fim à vida do segurado com a intenção de receber a indenização securitária.
No seguro sobre a vida de outrem, contratante e segurado (titular do interesse garantido) são pessoas distintas. O segurado é o portador do risco de morte, mas não participa da contratação e o contratante é quem celebra o contrato, assume todas as obrigações e adquire a qualidade de beneficiário do seguro, por ser titular do interesse garantido.
O indivíduo que contrata um seguro sobre a vida de outrem com a intenção de ceifar a vida do segurado e, por conseguinte, obter a indenização securitária, além de buscar a garantia de interesse ilegítimo, age, de forma deliberada, com a intenção de prejudicar outrem. A ausência de interesse na preservação da vida do segurado acarreta a nulidade do contrato de seguro por violação ao disposto nos arts. 757, 762 e 790 do CC/02.
Ante a gravidade do vício de nulidade que contamina o contrato de seguro celebrado com a intenção de garantir ato doloso e sem interesse legítimo do contratante, ele não pode produzir qualquer efeito jurídico. Logo, ainda que haja outros beneficiários do seguro além do autor do ato ilícito, eles não receberão a indenização securitária.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024.
DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Ação de guarda. Adoção intuitu personae. Acolhimento de criança. Burla ao cadastro do sistema nacional de adoção. Inobservância do rito de adoção. Indícios de risco à integridade física e psíquica. Inexistência. Princípio do melhor interesse. Vínculo afetivo com a família substituta. Primazia do acolhimento familiar.
A depender do caso concreto, a suspeita de ocorrência da adoção irregular de criança não justifica a sua inserção em abrigo institucional.
Trata-se de ação de guarda consensual provisória, com pedido liminar de tutela provisória de urgência. Os impetrantes queriam regularizar uma situação que já durava nove meses, explicando que assumiram a guarda do menor porque a mãe biológica não estava em condições de cuidar dele devido a problemas de saúde. Eles afirmaram que já tinham uma relação de amizade com a família da mãe antes do nascimento do menor e que o acolheram desde os primeiros dias de vida. Além disso, assinaram um Termo de Responsabilidade perante o Conselho Tutelar, com o consentimento da mãe.
Por expressa previsão constitucional e infraconstitucional, as crianças e os adolescentes têm o direito de ver assegurado pelo Estado e pela sociedade atendimento prioritário do seu melhor interesse e garantida suas proteções integrais, devendo tais premissas orientar o seu aplicador, principalmente, nas situações que envolvam abrigamento institucional.
A jurisprudência deste Tribunal consolidou-se no sentido da primazia do acolhimento familiar em detrimento da colocação de menor em abrigo institucional, salvo quando houver evidente risco concreto à sua integridade física e psíquica, de modo a se preservar os laços afetivos eventualmente configurados com a família substituta.
Segundo a Quarta Turma desta Corte, "A ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, devendo ceder ao lema do melhor interesse da criança ou do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar" (HC 468.691-SC).
O abrigamento institucional do menor que, aparentemente, está bem inserido em um ambiente familiar, além de ter seus interesses superiores preservados, com formação de suficiente vínculo socioafetivo com os seus guardiões de fato, tem o potencial de acarretar dano grave e de difícil reparação à sua integridade física e psicológica.
REsp 2.120.429-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Aplica-se a técnica de julgamento ampliado (art. 942 do CPC) ao agravo de instrumento que, por maioria, reforma decisão proferida em incidente de desconsideração (direta ou inversa) da personalidade jurídica, seja para admitir o pedido ou para rejeitá-lo.
Para que seja aplicável a técnica de ampliação do colegiado no julgamento não unânime de agravo de instrumento, é imprescindível que haja reforma de decisão que julgar parcialmente o mérito.
A aplicabilidade dessa norma aparenta estar circunscrita aos provimentos jurisdicionais que, à luz do art. 356 do CPC, decidem parcialmente o mérito de um ou mais pedidos - ou parcela deles - formulados na demanda principal quando se mostrarem incontroversos ou estiverem em condições de imediato julgamento.
Haverá hipóteses, contudo, em que a resolução de verdadeira ação incidental, e não de incidente processual típico, dará ensejo à aplicação da técnica de ampliação do colegiado, a exemplo do que ocorre na impugnação de crédito na recuperação judicial ou na falência.
O mesmo raciocínio deve ser empreendido para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que, apesar da nomenclatura adotada pelo legislador, constitui verdadeira ação incidental instaurada contra terceiros, que assim são considerados até o momento em que são regularmente cientificados da intenção de serem incluídos na lide como responsáveis por dívidas que não contraíram.
Conclui-se que o agravo de instrumento que, por maioria, reforma decisão proferida em incidente de desconsideração (direta ou inversa) da personalidade jurídica, seja para admitir o pedido ou para rejeitá-lo, inclui-se na regra legal de aplicação da técnica de julgamento ampliado, por se tratar de decisão de mérito.
Código de Processo Civil (CPC), art. 356
AgInt no REsp 2.015.374-SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, por maioria, julgado em 2/4/2024.
DIREITO CIVIL
No caso de descumprimento contratual decorrente do atraso na entrega de imóvel, os lucros cessantes não são presumíveis, pois dependem da finalidade do negócio, destinação ou qualidade do bem (edificado ou não), bem como da demonstração do prejuízo direto do adquirente.
A jurisprudência da Segunda Seção do STJ, firmada na sistemática dos recursos repetitivos, é de que, "no caso de descumprimento do prazo para a entrega do imóvel, incluído o período de tolerância, o prejuízo do comprador é presumido, consistente na injusta privação do uso do bem, a ensejar o pagamento de indenização, na forma de aluguel mensal, com base no valor locatício de imóvel assemelhado, com termo final na data da disponibilização da posse direta ao adquirente da unidade autônoma" (REsp n. 1.729.593/SP, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 25/9/2019, DJe 27/9/2019).
Quando o atraso se dá na entrega de imóvel edificado, é possível vislumbrar, de antemão, independentemente da destinação do bem - residencial ou comercial - que a injusta privação do seu uso enseja o pagamento de lucros cessantes, pois seja para moradia própria, fixação de estabelecimento comercial ou auferimento de renda advinda da locação do bem, a utilização de parâmetro afeto a aluguel mensal de imóvel assemelhado mostra-se adequada à realidade atinente à qualidade do bem, pois o imóvel edificado está apto a servir a tais propósitos.
A despeito de ocorrer a possibilidade de, eventualmente, em casos específicos, existir lucro cessante decorrente do atraso na entrega das obras de infraestrutura de terreno/lote não edificado, via de regra, é inviável, de plano, consignar tal encargo por presunção de prejuízo para toda e qualquer hipótese envolvendo referidos bens de modo a fazer incidir, ante a injusta privação do seu uso, o pagamento de indenização prontamente estabelecida na forma de aluguel mensal, com base em valor locatício de imóvel assemelhado.
Considera-se imprescindível, para tal fim, averiguar ao menos a finalidade do negócio, a destinação e a qualidade do bem. Ademais, essa Corte tem entendimento pacífico no sentido de que em se tratando de imóvel não edificado, eventual inadimplência do comprador não enseja o pagamento de taxa de fruição justamente em razão de se tratar de terreno sem edificação, ante o princípio de não ter sido utilizado para qualquer fim.
A premissa utilizada para tal compreensão pode ser analogicamente aplicada à questão envolvendo os lucros cessantes, já que, não sendo o terreno edificado, não é dado presumir que fosse utilizado para qualquer finalidade imediata, seja residencial, implementação de negócio, locatícia, entre outros, a autorizar a incidência de parâmetro vinculado a valor de aluguel mensal de bem assemelhado. Isso porque, fora casos muito específicos, não é comum que se proceda à locação de imóvel não edificado em loteamento, visto servirem os terrenos para construção futura de residência, implementação de negócio ou especulação imobiliária.
A realidade posta a debate - vinculada a atraso na entrega de lote/terreno não edificado - demanda que se faça um distinguishing em relação ao entendimento sedimentado em recurso repetitivo - diga-se, específico para descumprimento do prazo de entrega de bem edificado - dada a expressa disposição da lei (arts. 402 e 403) segundo a qual os lucros cessantes representam aquilo que o credor razoavelmente deixou de lucrar, por efeito direto e imediato da inexecução da obrigação pelo devedor.
Ora, caso o terreno servisse ao propósito de edificação futura para implementação de moradia ou negócio, é certo que tal não se daria imediatamente. Do mesmo modo, na hipótese de os lotes terem sido adquiridos para especulação imobiliária, o acréscimo patrimonial não se verificaria de plano, constituindo mera expectativa futura de ganho. Por tais razões, ainda que tenha havido descumprimento contratual decorrente do atraso na entrega do imóvel não edificado, os lucros cessantes não são passíveis de presunção, devendo ser devidamente demonstrados e cotejados para representar aquilo que o adquirente efetivamente deixou de lucrar em virtude do prejuízo direto e imediato do comportamento do devedor, afinal, nos lucros cessantes é imprescindível que se tenha certeza da vantagem perdida.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024.
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Em delitos sexuais, a retratação da vítima autoriza a revisão criminal para absolvição do réu, quando o conjunto probatório se limita à sua declaração e a testemunhos, sem outras provas materiais.
A controvérsia envolve a viabilidade de se acolher a retratação da vítima como fundamento para a admissão de nova prova, conforme previsto no art. 621, III, do Código de Processo Penal, e a validade do procedimento de reconhecimento pessoal efetuado durante a fase de inquérito policial.
No caso, durante a audiência de justificação, a vítima, que tinha 9 anos na época dos fatos e 22 anos na audiência de justificação criminal, declarou não poder afirmar com certeza que o imputado foi o autor dos crimes de roubo e estupro de vulnerável. Ela relatou não ter visto o rosto do agressor no dia dos fatos e que, dentre os suspeitos apresentados para reconhecimento pessoal em um veículo policial, apenas o recorrente era de pele negra.
À luz do arcabouço jurídico brasileiro, alinhado ao art. 621, inciso III, do CPP, destaca-se a viabilidade de revisão criminal ante o surgimento de provas novas de inocência subsequente à condenação. Tal preceito legal sublinha a essencialidade da justiça e da equidade no âmbito processual penal, garantindo a revisibilidade das condenações diante da emergência de elementos probatórios novos que corroborem a inocência do réu.
O ônus da prova da inocência jamais deve ser atribuído ao réu. Ao contrário, qualquer incerteza quanto à sua culpabilidade deve operar em seu favor, evidenciando uma manifestação prática do princípio do in dubio pro reo e reiterando o conceito de que é preferível absolver um culpado do que condenar um inocente.
A revisão criminal, conforme delineada pela jurisprudência do STJ, não se presta à reanálise de provas previamente examinadas nas instâncias inferiores, distanciando-se, portanto, da natureza de uma segunda apelação. Seu propósito essencial é assegurar ao condenado a correção de possíveis erros judiciários, exigindo para tanto a comprovação dos requisitos estabelecidos pelo art. 621 do CPP. Ainda, esta Corte tem consolidado o entendimento de que a descoberta de novas provas de inocência, conforme estabelecido no art. 621, inciso III, do CPP, necessita de comprovação por meio de justificação criminal.
Portanto, a retratação dos ofendidos ou a aparição de novos elementos probatórios que contestem as fundações da condenação original são cruciais para o reexame da causa, podendo resultar na absolvição do acusado caso as novas provas sejam suficientemente robustas para instaurar uma dúvida razoável quanto à sua culpabilidade.
Também, a jurisprudência desta Corte Superior reconhece que, nos delitos sexuais, a retratação da vítima, realizada em uma ação de justificação, não implica automaticamente a absolvição do acusado. Relevante é o contexto em que o novo depoimento da vítima se mostra incongruente com o conjunto das demais provas apresentadas nos autos.
No contexto apresentado, a informante, durante a audiência de justificação criminal, manifestou incerteza em afirmar a responsabilidade do imputado pelos delitos de roubo e estupro de vulnerável. Ela indicou a não visualização do rosto do ofensor no momento dos fatos. Adicionalmente, destacou que, dentre os indivíduos apresentados para reconhecimento em um veículo policial, o recorrente era o único com pele escura.
Essa declaração recente da testemunha coloca em xeque a fundamentação da sentença, a qual foi confirmada pelo Tribunal de origem, que se baseou unicamente em seu testemunho anterior, sugerindo a revisão da condenação com base no art. 621, III, do CPP, por introduzir dúvidas significativas sobre a consistência das provas que sustentaram a decisão judicial.
Do exposto, fixa a seguinte tese: Em delitos sexuais, a retratação da vítima autoriza a revisão criminal para absolvição do réu, quando o conjunto probatório se limita à sua declaração e a testemunhos, sem outras provas materiais.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024.
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
O procedimento de reconhecimento de pessoas, para sua validade, deve assegurar a semelhança física entre o suspeito e os demais indivíduos apresentados, conforme estabelece o art. 226, II, do CPP, evitando-se sugestões que possam influenciar a decisão da testemunha e comprometer o reconhecimento.
A controvérsia envolve a viabilidade de se acolher a retratação da vítima como fundamento para a admissão de nova prova, conforme previsto no art. 621, III, do Código de Processo Penal, e a validade do procedimento de reconhecimento pessoal efetuado durante a fase de inquérito policial.
Especificamente, questiona-se a legalidade desse reconhecimento, dado que os indivíduos apresentados para tal estavam impossibilitados de serem identificados de forma precisa. Isso se deve ao fato de terem participado do procedimento com os rostos cobertos, além de possuírem características físicas notadamente diferentes das atribuídas ao acusado, considerando-se que, entre as três pessoas trazidas para o reconhecimento, duas eram de pele branca e uma de pele preta.
Atualmente, esta Corte Superior possui uma jurisprudência firme que atribui especial importância à palavra da vítima em delitos de natureza sexual, especialmente quando esta se encontra em consonância com as demais evidências apresentadas ao processo. Essa orientação sublinha o reconhecimento da relevância da declaração da vítima, considerando-a elemento de prova crucial, desde que corroborado por outros indícios ou provas coligidas (demais provas), reforçando assim a busca por uma justiça equitativa e baseada na totalidade das provas disponíveis.
A palavra da vítima para comprovação da autoria dos crimes sexuais é dilema que entra em confronto com a problemática das falsas memórias, particularmente nos contextos de reconhecimento de suspeitos por vítimas de crimes, apresenta um desafio notável para o sistema de justiça penal. A facilidade com que se esquece a origem de uma informação pode conduzir a equívocos na identificação, em que um indivíduo previamente visto é incorretamente identificado como o autor do delito. Esse cenário ressalta a necessidade de um processo de identificação rigoroso e sensível, minimizando o risco de injustiças derivadas de reconhecimentos imprecisos.
A doutrina adverte que a obtenção de depoimentos precisos de crianças em situações de abuso sexual constitui um desafio complexo, exigindo métodos de entrevista meticulosos. A utilização de perguntas direcionadas, embora aumente a precisão na coleta de informações, pode inadvertidamente ampliar o risco de gerar falsos positivos, desafiando o sistema jurídico na avaliação de evidências e asseguração de julgamentos equitativos. Este dilema enfatiza a importância de balancear a eficácia na coleta de depoimentos com a necessidade de prevenir a contaminação da memória, especialmente em casos delicados envolvendo menores vítimas de abuso sexual.
O art. 226 do CPP visa mitigar as potenciais falhas inerentes à confiabilidade das memórias no curso do reconhecimento de pessoas, estabelecendo um procedimento minucioso, voltado para o incremento da justiça e acurácia nas práticas de identificação. Por meio de uma abordagem que antevê as limitações e falhas possíveis da memória humana, o artigo se propõe a construir um arcabouço que solidifique as bases para um reconhecimento justo e inequívoco.
Inicialmente, o dispositivo sublinha a importância de uma descrição prévia e detalhada da pessoa a ser reconhecida, fornecida pela testemunha, antes de qualquer exposição visual direta. Este passo inicial, fundamentado na premissa de estabelecer um reconhecimento enraizado em memórias pré-existentes, com o objetivo de essencialmente reduzir a margem para influências sugestivas ou pressões externas que possam deturpar o ato de reconhecimento.
Prosseguindo, o referido artigo adota medidas para prevenir sugestões indiretas, colocando o indivíduo a ser reconhecido ao lado de outras pessoas com características físicas similares, na medida do possível. Este procedimento é meticulosamente desenhado para minimizar o risco de identificações equivocadas, dispersando a atenção da testemunha entre vários sujeitos e fomentando uma escolha mais deliberada e fundamentada em memórias específicas. Ademais, são estabelecidas salvaguardas para que a testemunha realize o reconhecimento sem ser vista pela pessoa em questão, preservando assim a pureza do testemunho.
Recentemente, no julgamento do HC 598.886/SC, a interpretação desta Corte sobre tema foi revista pela Sexta Turma, no sentido de que se determine, doravante, a invalidade de qualquer reconhecimento formal - pessoal ou fotográfico - que não siga estritamente o que determina o art. 226 do CPP, sob pena de continuar-se a gerar uma instabilidade e insegurança de sentenças judiciais que, sob o pretexto de que outras provas produzidas em apoio a tal ato - todas, porém, derivadas de um reconhecimento desconforme ao modelo normativo - autorizariam a condenação, potencializando, assim, o concreto risco de graves erros judiciários.
Colocar pessoas brancas e uma negra para o reconhecimento, sendo que o suspeito é negro, viola esse dispositivo legal, pois tal arranjo não atende ao requisito de semelhança entre os indivíduos colocados para o reconhecimento. A lógica por trás dessa exigência é reduzir ao máximo o viés e a possibilidade de erro por parte da testemunha, garantindo que o reconhecimento seja baseado em características específicas do suspeito, e não em preconceitos ou influências externas direcionadas para indicar o acusado como o autor dos crimes perpetrados.
Nesse cenário, a composição descrita leva a uma sugestão implícita, em que a presença de uma minoria de indivíduos que compartilham características físicas com o suspeito (neste caso, a cor da pele) induz a testemunha a selecionar o suspeito baseado na distinção mais óbvia entre os participantes, em vez de uma identificação cuidadosa e detalhada. Isso compromete a justiça e a precisão do processo de reconhecimento, indo contra o espírito do art. 226, II, do CPP, que busca assegurar condições equitativas e evitar qualquer forma de indução no reconhecimento.
Portanto, para estar em conformidade com o CPP e assegurar a integridade do processo de reconhecimento, é fundamental que todos os indivíduos envolvidos no procedimento de reconhecimento tenham semelhanças significativas com o suspeito, incluindo, mas não se limitando a características físicas como a cor da pele.
REsp 2.113.000-SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 2/4/2024.
EXECUÇÃO PENAL
É possível a penhora de até 1/4 do pecúlio obtido pelo condenado para saldar a pena de multa determinada em sentença condenatória.
A controvérsia reside em definir se, com fundamento no art. 50, § 2º, do CP, e no art. 833 do CPC, seria impenhorável o pecúlio do condenado.
No caso, após a frustração das tentativas de localização de valores por meio do SISBAJUD/RENAJUD, o Ministério Público solicitou a penhora de eventual pecúlio proveniente de trabalho no estabelecimento prisional em nome do condenado, requerendo o bloqueio e penhora de 25% do valor informado, nos termos do art. 168, inciso I, da Lei n. 7.210/1984, o que foi atendido pelo Juízo da Vara de Execuções Penais e confirmado pelo Tribunal de origem.
O pecúlio, recebido pelo prisioneiro e previsto no art. 29, caput, e §§ 1º e 2º, da Lei de Execução Penal, consiste em valores monetários ou ativos adquiridos durante o período de cumprimento da pena, seja por meio do trabalho exercido dentro ou fora da instituição prisional, desde que em conformidade com a legislação vigente.
Esses recursos têm diversas finalidades: o detento pode utilizá-los para adquirir produtos dentro do estabelecimento prisional, custear suas despesas pessoais e, em determinados casos, pode até mesmo reservá-los para o período posterior à sua liberação. O propósito principal do pecúlio é garantir ao detento meios de subsistência e contribuir para sua reintegração à sociedade após o cumprimento da pena. Além disso, o pecúlio pode ser utilizado para a reparação dos danos causados pelo crime cometido, desde que haja determinação judicial nesse sentido e que tais danos não sejam indenizados por outras fontes.
A pena de multa representa uma modalidade específica de sanção penal, impondo ao sentenciado a obrigação de contribuir com um valor determinado ao fundo penitenciário. Uma das modalidades de cumprimento da pena de multa, previsto no art. 49 do Código Penal, é por meio do pecúlio.
Para cumprir a pena de multa, a legislação específica estabelece os procedimentos legais para resguardar o seu adimplemento, dentre eles a possibilidade de penhora de bens. O respaldo para a possibilidade de constrição de bens da pessoa condenada encontra-se no art. 164, §1°, da Lei n. 7.210/1984. Esse dispositivo confere autorização para a "penhora de tantos bens quanto bastem para garantir a execução". É importante ressaltar que essa medida pode abranger inclusive a remuneração do condenado, conforme estipulado nos arts. 168, incisos I a III, e 170 do mesmo diploma legal.
O art. 164 da LEP estabelece que, após a extração da certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que serve como título executivo judicial, o Ministério Público solicitará, em autos separados, a citação do condenado. Este terá o prazo de 10 dias para efetuar o pagamento da multa ou indicar bens para penhora. Caso o prazo transcorra sem o pagamento da multa ou o depósito do valor correspondente, será realizada a penhora de bens em quantidade suficiente para garantir a execução, conforme determinado pelo §1º do art. 164.
Assim, se a legislação de regência admite a cobrança da multa pena mediante desconto na remuneração do apenado, não há que se falar na incidência do art. 833, IV, do CPC. Tal compreensão segue o princípio da especialidade, assegurando a aplicação efetiva das normas específicas da legislação penal executória.
Por fim, os arts. 168 e 170 da Lei de Execuções Penais não entram em conflito com o disposto no § 2º do art. 50 do Código Penal, o qual estabelece que "o desconto [da pena de multa] não deve incidir sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família". Isso porque, cabe ao juízo da execução, no caso concreto, avaliar se a penhora de parte da remuneração comprometerá a subsistência do condenado e de sua família.
AgRg no HC 838.938-SP, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 18/3/2024, DJe 21/3/2024.
EXECUÇÃO PENAL
Para fins de aplicação do indulto previsto no Decreto Presidencial n. 11.302/2022, os crimes cometidos em contextos diversos, fora das hipóteses de concurso, material ou formal, não se exige o cumprimento integral da pena pelos crimes impeditivos.
Cinge-se a questão a saber se é possível verificar os requisitos do indulto do Decreto n. 11.302/2022 sobre cada tipo derivado de ação penal própria, sem concurso de crimes, ou se é necessário prover a junção de crimes derivados de ações penais diversas e guias próprias na execução penal como fator para análise do preenchimento dos requisitos objetivos.
Nos termos do art. 11, parágrafo único, "não será concedido indulto natalino correspondente a crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo do benefício, na hipótese de haver concurso com os crimes a que se refere o art. 7º, ressalvada a concessão fundamentada no inciso III do caput do art. 1º".
Com efeito, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça era de que a expressão "concurso", utilizada pelo artigo supracitado, deveria ser compreendida em seu sentido amplo, como unificação de penas, ou seja, a prática de quaisquer desses delitos, não se referindo, apenas, nas hipóteses de concurso material e formal - arts. 69 e 70 do CP.
A Terceira Seção desta Corte, contudo, em julgamento ocorrido aos 8/11/2023, posicionou-se no sentido de que "apenas no caso de crime impeditivo cometido em concurso com crime não impeditivo que se exige o cumprimento integral da reprimenda dos delitos da primeira espécie. Em se tratando de crimes cometidos em contextos diversos, fora das hipóteses de concurso (material ou formal), não há de se exigir o cumprimento integral da pena pelos crimes impeditivos" (AgRg no HC 856.053/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 14/11/2023).
Na ocasião, destacou-se que o decreto de indulto deve ser interpretado restritivamente, sob pena de invasão do Poder Judiciário na competência exclusiva da Presidência da República, conforme art. 84, XII, da Constituição Federal.
Assim, partindo-se de uma interpretação restritiva do Decreto n. 11.302/2002, apenas em caso de concurso de crimes impeditivos e não impeditivos, dentro de um mesmo contexto, não seria possível aplicar o indulto, nos termos do art. 11, parágrafo único, do referido ato presidencial.
EREsp 1.304.939-RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, sessão de julgamento do dia 3/4/2024.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Cinge-se a controvérsia em definir se é possível a fixação de honorários advocatícios de sucumbência (ausente a má-fé) em desfavor da parte ré em ação civil pública promovida por fundação ou associação civil, ou seja, a possibilidade de fixação de honorários em favor de tais entidades.
Na sessão de julgamento anterior, em 4/10/2023, a Ministra relatora, Laurita Vaz, apresentou voto no sentido de que, não obstante os entendimento da Corte Especial de que "quando a ação civil pública é ajuizada pelo Ministério Público ou por ente público, pelo princípio da simetria, é descabida a condenação da parte ré em honorários advocatícios, salvo comprovada má-fé, consoante o art. 18 da Lei n. 7.347/1985", "esse entendimento não se aplica quando a parte autora da ação civil pública é associação ou fundação privada, diante da necessidade de se garantir maior acessibilidade à Justiça para a sociedade civil organizada, bem como da impropriedade de se equiparar organizações não governamentais a grandes grupos econômicos/instituições do Estado".
Prosseguindo o julgamento, na sessão realizada em 3/4/2024, apresentou voto em sentido contrário o Ministro Raul Araújo, afirmando ser plenamente aplicável o critério da simetria, nos casos em que as associações ou fundações privadas, autoras em ações civis públicas, têm seu pedido julgado procedente, "devendo ficar, igualmente, vedada a possibilidade de serem beneficiadas com a condenação da ré ao pagamento dos ônus sucumbenciais, salvo se houver comprovação de má-fé".
Foram apresentados ainda os votos da Ministra Nancy Andrighi e do Ministro Humberto Martins acompanhando o voto da Relatora, e, ao final, pediu vista antecipada o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques e, nos termos do art. 161, §2º, do RISTJ, o pedido foi convertido em vista coletiva.
ProAfR no REsp 2.035.052-SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, julgado em 19/12/2023, DJe 8/4/2024 (Tema 1242).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
A Corte Especial acolheu a proposta de afetação dos REsps n. 2.035.052-SP, 2.035.262-SP, 2.035.272-SP e 2.035.284-SP ao rito dos recursos repetitivos, a fim de uniformizar o entendimento a respeito da seguinte controvérsia: "definir se há legitimidade concorrente do advogado e da parte para promover a execução dos honorários advocatícios".