REsp 1.977.027-PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 10/08/2022 (Tema 1139).
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Tráfico de drogas. Requisitos da minorante do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas). Emprego de inquéritos e/ou ações penais em curso. Descabimento. Fundamentação inidônea. Tema 1139.
É vedada a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006.
A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) constitui direito subjetivo do acusado, caso presentes os requisitos legais, não sendo possível obstar sua aplicação com base em considerações subjetivas do juiz. É vedado ao magistrado instituir outros requisitos além daqueles expressamente previstos em lei para a sua incidência, bem como deixar de aplicá-la se presentes os requisitos legais.
É uníssono nesta Corte Superior que inquéritos e ações penais em curso podem ser utilizados para avaliar, em caráter preliminar e precário, a periculosidade do agente para fins de fundamentar eventual prisão cautelar. Isso se justifica porque esta medida acauteladora não exige que se afirme inequivocamente que o Réu provisoriamente segregado é o autor do delito ou que sua liberdade indubitavelmente oferece riscos, bastando que haja, nos termos do art. 312, caput, do Código de Processo Penal, "indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado".
Diversamente das decisões cautelares, que se satisfazem com a afirmação de simples indícios, os comandos legais referentes à aplicação da pena exigem a afirmação peremptória de fatos, e não a mera expectativa ou suspeita de sua existência. Por isso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem rechaçado o emprego de inquéritos e ações penais em curso na formulação da dosimetria da pena, tendo em vista a indefinição que os caracteriza.
Isso porque, por expressa previsão inserta no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, a afirmação peremptória de que um fato criminoso ocorreu e é imputável a determinado autor, para fins técnico-penais, somente é possível quando houver o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Este raciocínio conduziu o Superior Tribunal de Justiça à edição da Súmula n. 444, segundo a qual, in verbis: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base." De fato, a mesma ratio decidendi que orientou a edição do entendimento sumular no sentido de que inquéritos e ações penais em curso não podem ser empregados, na primeira fase da dosimetria, para agravar a pena-base, justifica a impossibilidade de que esses mesmos parâmetros sejam empregados em outras etapas da dosimetria, como na avaliação de causas de diminuição de pena.
Todos os requisitos da minorante do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 demandam uma afirmação peremptória acerca de fatos, não se prestando a existência de inquéritos e ações penais em curso a subsidiar validamente a análise de nenhum deles.
Para análise do requisito da primariedade, é necessário examinar a existência de prévia condenação penal com trânsito em julgado anterior ao fato, conforme a dicção do art. 63 do Código Penal. Já a análise do requisito dos bons antecedentes, embora também exija condenação penal com trânsito em julgado, abrange a situação dos indivíduos tecnicamente primários. Quanto à dedicação a atividades criminosas ou o pertencimento a organização criminosa, a existência de inquéritos e ações penais em curso indica apenas que há investigação ou acusação pendente de análise definitiva e cujo resultado é incerto, não sendo possível presumir que essa suspeita ou acusação ainda em discussão irá se confirmar, motivo pelo qual não pode obstar a aplicação da minorante.
Não se pode ignorar que a utilização ilegítima de inquéritos e processos sem resultado definitivo resulta em provimento de difícil reversão. No caso de posterior arquivamento, absolvição, deferimento de institutos despenalizadores, anulação, no âmbito dos referidos feitos, a defesa teria que percorrer as instâncias do Judiciário ajuizando meios de impugnação autônomos para buscar a incidência do redutor, uma correção com sensível impacto na pena final e cujo tempo necessário à sua efetivação causaria prejuízos sobretudo àqueles mais vulneráveis.
A interpretação ora conferida ao art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não confunde os conceitos de antecedentes, reincidência e dedicação a atividades criminosas. Ao contrário das duas primeiras, que exigem a existência de condenação penal definitiva, a última pode ser comprovada pelo Estado-acusador por qualquer elemento de prova idôneo, tais como escutas telefônicas, relatórios de monitoramento de atividades criminosas, documentos que comprovem contatos delitivos duradouros ou qualquer outra prova demonstrativa da dedicação habitual ao crime. O que não se pode é inferir a dedicação ao crime a partir de simples registros de inquéritos e ações penais cujo deslinde é incerto.
Não há falar em ofensa aos princípios da individualização da pena ou da igualdade material, pois o texto constitucional, ao ordenar que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, vedou que a existência de acusação pendente de análise definitiva fosse utilizada como critério de diferenciação para fins pedagógicos.
CC 179.662-DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 17/08/2022.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL
Compete às Turmas que compõem a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça apreciar mandado de segurança em que se questiona a compatibilidade de atos praticados por Junta Comercial em face de normas de Direito Societário.
Cinge-se a controvérsia em determinar qual Seção do Superior Tribunal de Justiça teria competência para apreciar mandado de segurança impetrado contra ato praticado por Presidente de Junta Comercial que cria a obrigação de publicar demonstrações financeiras de sociedades empresariais de grande porte no Diário Oficial do Estado ou em jornal de grande circulação, condicionando o arquivamento das atas que aprovaram as referidas publicações na autarquia estadual.
Na espécie, impetrou-se mandado de segurança postulando pela concessão da ordem para que a Junta Comercial seja compelida a registrar as Atas de Aprovação de Contas das impetrantes, sem que necessário fosse a comprovação da publicação das demonstrações financeiras, pois a Lei n. 11.638/2007 não preveria a obrigação de publicar as demonstrações financeiras de sociedades empresariais de grande porte no Diário Oficial do Estado ou em jornal de grande circulação, sendo absolutamente ilegal que uma norma de hierarquia inferior inove e crie obrigação sobre a qual a Lei de regência sequer versou.
Não obstante a alegação nos autos de que as deliberações e enunciados criados pela Junta Comercial estariam à margem da legislação específica, tem-se que o exame da suposta ilegalidade das normas infralegais ou mesmo o abuso do direito de normatizar envolve controvérsia atrelada ao direito societário, notadamente no que diz respeito à adequação dos referidos atos normativos à Lei n. 11.638/2007, que alterou e revogou dispositivos da Lei n. 6.404/1976 e à Lei n. 6.385/1976, estendendo às sociedades de grande porte disposições relativas à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras.
Desse modo, conclui-se que, no caso, embora apresente suposta ilegalidade de atos praticados por Junta Comercial, diz respeito à compatibilidade da atividade da autarquia estadual em face de normas de Direito Societário, o que, em última razão, estão umbilicalmente associadas ao Direito Privado, atraindo a competência das Turmas que compõem a Segunda Seção desta Corte Superior.
AREsp 1.408.660-SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO ADMINISTRATIVO
Ação popular. Prefeito. Ato administrativo. Encaminhamento de projeto de lei à câmara municipal. Inobservância da legislação vigente. Desvio de finalidade. Condenação ao ressarcimento de valores despendidos na realização dos trabalhos desenvolvidos com vista à elaboração de Projeto de Lei. Descabimento. Teoria da interrupção do nexo causal.
Não é possível a condenação de prefeito ao ressarcimento de valores despendidos na realização dos trabalhos desenvolvidos com vista à elaboração de Projeto de Lei, na hipótese em que o ato administrativo encaminhado à Câmara Municipal desconsidera a legislação vigente, e é praticado com desvio de finalidade.
A controvérsia diz respeito à possibilidade de condenar o chefe do Poder Executivo Municipal ao ressarcimento de valores despendidos na realização dos trabalhos desenvolvidos com vista à elaboração de Projeto de Lei, quando o ato administrativo encaminhado à Câmara Municipal, com vista à desafetação e venda de área pública, desconsidera a legislação vigente e há provas da ocorrência de desvio de finalidade.
Na espécie, o ex-prefeito foi condenado em ação popular à devolução dos valores despendidos na realização dos trabalhos desenvolvidos com vista à elaboração do Projeto de Lei que gerou Lei que transformou bem público de uso especial em dominical, autorizando a sua venda, diante da desafetação em desconsideração à legislação vigente e com desvio de finalidade.
Porém, o dano supostamente causado pelo réu, corrigido nesta ação, foi aquele provocado ao patrimônio histórico e cultural da cidade de São Paulo, em razão do alegado desvio de finalidade provocado pelo réu. É com esta lesão que o demandado mantém vinculação direta e necessária, e é por ela que é juridicamente responsável.
Entretanto, a partir do momento em que deflagra o processo legislativo, a tramitação em si do projeto de lei não ofende nenhum bem jurídico tutelado em abstrato, ou seja, não provoca dano. No máximo, a movimentação da máquina estatal implica custo econômico, relacionado ao regular exercício de atribuições típicas da Administração. Mas custo não é sinônimo de dano.
Mesmo se pudesse falar em dano, prevalece no Brasil, dentre as diversas teorias da causalidade, a da causa direta e imediata (teoria da interrupção do nexo causal), especialmente em razão do disposto no art. 403 do CC/2002. Nesse cenário, o elemento anterior ao dano deve se apresentar como único e necessário para provocar direta e imediatamente o resultado.
A conduta direta e imediata do demandado apresenta nexo causal apenas com a deflagração do projeto de lei. O rumo que este (o projeto) tomou depois não tem mais relação direta com aquela (a deflagração). Isto é, a partir da conduta do recorrente, múltiplos destinos poderiam ser vividos: rejeição imediata do projeto; tramitação mais célere; tramitação mais vagarosa; envio a distintos órgãos da casa legislativa; participação ou não da sociedade etc.
Assim, ainda que se falasse em "dano" quanto à tramitação do projeto de lei, este não teria relação direta e imediata com a conduta do ex-prefeito, mas sim seria decorrente da concomitância de outras causas e eventos, inclusive oriundos da conduta de terceiros (os membros da casa legislativa municipal).
REsp 1.746.268-SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, por maioria, julgado em 16/08/2022.
DIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO EMPRESARIAL
É possível a dedução, na apuração do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ, pela sistemática do lucro real, da soma destinada ao pagamento de montante em razão da prestação de serviços de administradores e conselheiros, ainda que não corresponda a valor mensal e fixo.
Cinge-se a controvérsia à possibilidade de deduzir-se na apuração do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ, pela sistemática do lucro real, a soma destinada ao pagamento de montante em razão da prestação de serviços de administradores e conselheiros que não corresponda a valor mensal e fixo.
A Constituição da República estatui que a base de cálculo do Imposto sobre a Renda consiste em "renda e proventos de qualquer natureza" (art. 153, III, § 2º, I), estabelecendo, outrossim: (i) que "será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei" (art. 153, III, § 2º, I); e (ii) o papel normativo da lei complementar em matéria tributária na definição da base de cálculo dos impostos, dentre eles o IR (art. 146, III, a).
A base de cálculo, inquestionavelmente, há sempre de guardar pertinência com aquilo que se pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos, é dizer, absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de incidência. A base imponível do tributo em tela, portanto, deverá reportar-se àquele fato de conteúdo econômico inserto na hipótese de incidência tributária, guardando pertinência com a capacidade contributiva absoluta ou objetiva - relacionada aos fatos legislativamente escolhidos por representarem manifestações de riqueza - apreendida pelo legislador. O princípio da capacidade contributiva constitui diretriz central, uma vez que opera como fundamento para a modulação da carga tributária em matéria de impostos (CR, art. 145, § 1º). Como expressão, no campo tributário, de diretiva de maior amplitude, que é a da igualdade, o princípio da capacidade contributiva carrega consigo a plenitude de eficácia normativa atribuída àquele.
Extrai-se da Lei Maior, em síntese, que o mecanismo para a determinação da base de cálculo do IRPJ consistente na dedução deve ser interpretado à luz do apontado conjunto de normas.
Concomitantemente, a moldura normativa infraconstitucional aplicável à dedução de despesas na apuração do lucro real no IRPJ não mais condiciona a dedutibilidade do pagamento dos honorários de administradores e conselheiros de empresas aos requisitos da periodicidade - mensal -, bem como da constância do numerário desembolsado - fixo.
Por primeiro, o ainda vigente Decreto-Lei n. 5.844/1943, que dispõe sobre a cobrança e fiscalização do Imposto sobre a Renda, estabelece a classificação das remunerações relativas à prestação de serviços pelos "conselheiros fiscais e de administração e diretores de sociedades anônimas, civis, ou de qualquer espécie", bem como disciplina a base de cálculo do IRPJ.
Por sua vez, a Lei n. 4.506/1964, ao dispor sobre o IRPJ, estabelece o que integra a receita bruta operacional, bem ainda define como despesas operacionais aquelas "[...] não computadas nos custos, necessárias à atividade da empresa e a manutenção da respectiva fonte produtora" (art. 44 e 47, respectivamente), fixando limite de valor para os honorários e retiradas, todavia nada dispondo acerca das antigas condições para os honorários - pagamento fixo e mensal - antes plasmadas no Decreto-Lei n. 5.844/1943.
Por seu turno, a redação, anterior à revogação pela Lei n. 9.430/1996, dos arts. 29 e 30, ambos do Decreto-Lei n. 2.341/1987, dispunha acerca das limitações à dedutibilidade de remuneração de dirigentes
Por fim, a Lei n. 9.249/1995, a par da vedação à dedução de determinadas despesas (art. 13), revogou expressamente, repita-se, os apontados arts. 29 e 30, do Decreto-Lei n. 2.341/1987 (art. 88, XIII), que dispunham acerca do limite quantitativo para a despesa operacional relativa à remuneração mensal dos sócios, diretores e administradores.
No plano infralegal, tanto a Instrução Normativa SRFB n. 93/1997 quanto o Decreto n. 3.000/1999 são consentâneos com a dedutibilidade da despesa com a remuneração pela prestação de serviços de administradores e conselheiros.
Há quem defenda a exigência de que os valores sejam mensais e fixos, pois tal despesa, sem a limitação, seria dotada de tamanha elasticidade que comportaria qualquer coisa, de modo que tudo caberia no conceito de remuneração.
Porém, tal enfoque, normalmente atrelado à categoria da retirada do sócio gerente ("proprietário da empresa"), não guarda identidade com a realidade do administrador profissional (vínculo de subordinação), o qual não detém governabilidade sobre a própria remuneração, à luz das normas societárias, dentre as quais, a estampada na Lei n. 6.404/1976, denominada "Lei das Sociedades Anônimas".
No tocante ao aspecto material da hipótese de incidência, o art. 43 do CTN, ao definir os conceitos de renda e proventos, não destoa do conceito constitucional. Pressupõe-se, de igual modo, tal harmonia normativa em relação às disposições atinentes à dedução de valores da base de cálculo da exação, justamente pela imperativa necessidade de correlação lógica entre a base imponível indicada pela lei e o aspecto material da hipótese de incidência.
O IRPJ, à luz do disposto no art. 44 do CTN, é mensurado pela sistemática do lucro real, presumido ou arbitrado, sendo a primeira modalidade de base de cálculo a regra, a qual consiste, singelamente, no lucro líquido, com alguns ajustes, adições etc.
Voltando o olhar especificamente para o instituto da dedução, inserto no bojo do mecanismo da apuração do lucro real, é desnecessário que a lei preveja a dedutibilidade daquilo que, aprioristicamente, não se compatibiliza com a própria materialidade do IRPJ.
Logo, a indedutibilidade de despesa é que enseja previsão legal, porque constitui exceção no contexto da definição do elemento quantitativo da exação, sob pena de desatendimento do comando normativo constante dos arts. 150, I, da Constituição da República, e 97, IV, e § 1º, do Código Tributário Nacional, porquanto tal circunstância traduziria aumento indireto de tributação.
Restrições à dedução da soma destinada ao pagamento da remuneração em razão dos serviços prestados pelos administradores e conselheiros, calcadas no argumento de que se estaria visando coibir a evasão fiscal, segundo a doutrina, seriam anacrônicas, pois não mais existiria a razão histórica que justificou adicionar à base de cálculo do IR-PJ, o excesso de remuneração de diretores e administradores profissionais. Isso porque as primeiras disposições legais impeditivas de deduções datam de épocas antigas, nas quais o cenário empresarial era totalmente diferente do atual - época das empresas de famílias e dos dirigentes integrantes dessas famílias -, sendo que atualmente mesmo as empresas familiares se agigantaram e em geral estão sob gerência profissional, enquanto as menores enveredam pelo lucro presumido ou mesmo pelo regime do SIMPLES, no qual em nada importam os custos e as despesas existentes ou não. Ademais, havendo desde 1996 isenção na distribuição de lucro, não é em todo caso que interessa disfarçar um lucro efetivo em outro tipo de custo ou despesa que, para o receptor, passa a ser renda tributável.
Portanto, o mecanismo da dedutibilidade não deve condicionar exegese que despreze as molduras constitucional e legal fundamentais da tributação do Imposto sobre a Renda, desfigurando a sua materialidade, inclusive quanto ao decréscimo patrimonial.
À vista da ausência de precedente específico acerca da matéria em debate neste Superior Tribunal de Justiça, destaca-se o entendimento desta Corte em relação à base imponível do IRPJ, segundo a qual é vedada a tributação fundada em atos normativos infralegais. De igual modo, a Segunda Turma deste Tribunal Superior assentou, há muito, na linha do que já assinalava abalizada doutrina a impropriedade da criação de óbices à dedutibilidade por interpretação jurídica ou veiculados por atos infralegais.
Dessarte, revela-se inaceitável restringir, mediante ato administrativo normativo (IN SRFB n. 93/1997), a legítima dedutibilidade da apontada despesa com a remuneração pela prestação de serviços de administradores e conselheiros.
REsp 1.287.461-SP, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 21/06/2022, DJe 30/06/2022.
DIREITO ADMINISTRATIVO, RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Agência reguladora. Poderes Administrativos. ANAC. Recuperação judicial. Slots e Hotrans (horários de transporte). Realocação. Incorporação de ativos de empresa aérea. Análise da matéria pelo Poder Judiciário. Excepcionalidade. Vícios objetivos na decisão administrativa.
Ao Poder Judiciário não cabe se imiscuir na decisão administrativa da ANAC acerca da realocação de slots e hotrans (horários de transporte), serviço prestado por empresa aérea em recuperação judicial, a ponto de impor a observação absoluta do princípio da preservação da empresa, quando inexistirem vícios objetivos na decisão, mesmo em prejuízos à concorrência do setor e aos usuários do serviço público concedido.
Trata-se de análise de decisão administrativa da ANAC acerca da realocação de slots e hotrans (horários de transporte) de sociedade empresária em recuperação judicial.
Inicialmente, consigna-se que não se pode submeter a lógica econômica e administrativa unicamente aos interesses da sociedade empresária em recuperação judicial. No caso, trata-se de slots notoriamente disputadíssimos, no sobrecarregado aeroporto de Congonhas. Afirma-se que 61 horários de voos se encontravam ociosos, alocados à recuperanda, mas sem exploração alguma.
Não resta dúvida de que a agência reguladora do setor detém competência e capacidade institucional superior ao do Judiciário para identificar se o interesse econômico da coletividade, nele considerado o dos usuários diretos do sistema, que desejam voar e transportar cargas, é melhor atendido pela manutenção dos slots com a empresa em recuperação ou com outras, já operacionais ou ingressantes no mercado.
A própria promoção do pleno emprego pode ser mais bem alcançada pelas concorrentes, impedidas de participar do mercado pela manutenção dos slots em ociosidade.
O argumento jurídico apenas reforça a interpretação normativa positivada: compete à agência a gestão dos slots, não sendo passíveis de incorporação, ainda que tangencial, aos direitos da empresa aérea em recuperação, sob pena de grave violação da legislação federal do setor produtivo concedido e altamente regulado, em função de sua natureza estratégica na economia nacional.
A solução desta Corte na SLS n. 1.161 resolve bem a matéria, inexistindo razão para abandono do precedente específico, a despeito da cognição diversa daquela via. Naquele feito, extrai-se do voto-vista da Ministra Nancy Andrighi: "Entendo, nesta análise preliminar da matéria (que naturalmente poderá ser revista por ocasião do julgamento do recurso especial que advirá), que assiste razão à ANAC. Com efeito, os critérios técnicos pelos quais ela define as alocações de espaços para pousos e decolagens em cada aeroporto nacional dizem respeito à sua competência específica de regulação do setor aeronáutico e aeroportuário. As decisões acerca de relocação de vagas ociosas em aeroportos de alta demanda devem ser tomadas de maneira rápida e técnica. Admitir que o Poder Judiciário se imiscua no mérito dessa questão, ainda mais mediante decisão provisória em processo que não questiona o ato administrativo pela via principal, pode ser muito perigoso. Corremos o risco, com isso, de abrir um precedente que paralise as atividades da agência reguladora, que muitas vezes tem de tomar decisões rápidas para equacionar problemas urgentes. Não estou, aqui, menosprezando a necessidade de preservação da empresa. Esse princípio naturalmente tem de estar sempre no horizonte de qualquer aplicador do direito, não apenas quando se está a julgar uma recuperação judicial, mas em qualquer processo. Contudo, ou o ato administrativo é válido, ou inválido. Ou ele é passível de revisão pelo judiciário, ou não é. Essas questões todas têm de ser enfrentadas. Se o ato é passível de revisão e é inválido, os motivos para tanto devem ser declinados pelo julgador. Meramente desautorizar a ordenação da estrutura aeroportuária, definida pela agência reguladora criada especificamente para esse fim, sem declinar os motivos, ligados ao próprio ato, é muito perigoso. Mais que isso: dizer, como fez o TJ/SP, que a agência reguladora deveria observar o princípio da preservação da empresa ao decidir sobre a ordenação dos aeroportos, parece-me uma perigosa interferência no mérito administrativo do ato".
Além disso, nos termos do art. 27 da Lei Geral de Concessões (Lei n. 8.987/1995), a transferência da concessão ou do controle acionário da concessionária sem anuência do Poder concedente implica caducidade do contrato.
REsp 1.999.967-AP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 17/08/2022.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Fundamentação de decisão judicial. Concurso público. Polícia militar. Avaliação de estatura mínima. Afastamento do limite. Princípios jurídicos. Falta de razoabilidade e proporcionalidade. Peculiaridades da população local. Conceitos jurídicos indeterminados. Não aplicação de precedente vinculativo do Supremo Tribunal Federal. Negativa de prestação jurisdicional. Caracterização.
Incorre em negativa de prestação jurisdicional o tribunal que prolata acórdão que, para resolver a controvérsia, apoia-se em princípios jurídicos sem proceder à necessária densificação, bem como emprega conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso.
O caso concreto trata de concurso público para o ingresso na carreira policial militar do Estado do Amapá, havendo previsão de avaliação da altura do candidato, que tinha de observar estatura mínima prevista em lei e no edital do certame.
Para a concorrência feminina o estipulado era 1,60m, mas as recorridas tinham 1,57m, ou seja, três centímetros a menos do que o exigido de todas as demais candidatas.
Apesar disso, o Tribunal da origem consentiu com a concorrência das recorridas, pontuando que, a despeito de restar pacificado o entendimento no sentido de observar as regras editalícias e a legislação estadual específica da categoria, em obediência ao posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, diante das particularidades da causa, o lapso de tempo de mais de 3 (três) anos da data da concessão do pedido liminar e as informações prestadas pela autoridade coatora, de que as impetrantes teriam sido inseridas no curso de formação como alunos soldados com rubrica, sem nenhuma mácula que pudesse comprometer-lhes a carreira, demonstrando a eficiência no exercício do cargo público, a eliminação das recorridas, em razão de alguns centímetros de diferença do mínimo exigido em edital constituiria medida desarrazoada, eis que teria ocorrido a solidificação da situação fática, diante do decurso de tempo entre a liminar concedida no ano de 2018 e os dias atuais.
A argumentação é em parte metajurídica e em parte fundada em princípios os quais não chegam a ser densificados, a ser explicitados nem o conceito tampouco o modo como se aplicam ao caso concreto, sendo certo que a segurança jurídica, a razoabilidade e a proporcionalidade são valores que não se confundem entre si e que orientam não apenas a atividade de aplicação de lei, mas a sua elaboração, o que significa a necessidade de ponderar se esses vetores já não foram observados no processo legislativo.
Pesa assinalar ainda que a despeito de afirmar não ocorrer o julgamento pela inconstitucionalidade da lei estadual, a interpretação de normativo com o fim de não se aplicar no caso concreto afasta por via oblíqua a norma e, por isso, é realmente imperioso que se esclareça o amparo constitucional para tanto.
Por fim, o acórdão é inapelavelmente nulo ao deixar de aplicar precedente vinculativo do Supremo Tribunal Federal que trata justamente da impossibilidade de o candidato permanecer investido em função pública por mera aplicação de medida liminar cuja confirmação, aliás, é fundada em absolutamente nenhum argumento fora o transcurso do tempo, no caso, de três anos, ou seja, o Tribunal deferiu o direito sem examinar absolutamente nada, o que, por conseguinte, conduz ao reconhecimento da negativa de prestação jurisdicional.
AgInt no AREsp 2.092.094-GO, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
O recurso que insiste em não atacar especificamente os fundamentos da decisão recorrida seguidamente é manifestamente inadmissível (dupla aplicação do art. 932, III, do CPC/2015), devendo ser penalizado com a multa prevista no art. 1.021, §4º, do CPC/2015.
De início, ressalta-se que, conforme já assentado pela Corte Especial do STJ, a decisão de inadmissibilidade do recurso especial não é formada por capítulos autônomos, mas por um único dispositivo, o que exige que a parte agravante impugne todos os fundamentos da decisão que, na origem, não admitiu o recurso especial".
A nova sistemática processual, introduzida pelo CPC de 2015, ratificou tal compreensão, conforme previsto no art. 1.021, § 1º. Assim, constata-se que o princípio da dialeticidade permanece vivo, nesse novo diploma processual, uma vez que se revela indispensável que a parte recorrente faça a impugnação específica dos fundamentos da decisão agravada, expondo os motivos pelos quais não teriam sido devidamente apreciados os fatos e/ou as razões pelas quais não se teria aplicado corretamente o direito, no caso concreto, enfrentando os fundamentos da decisão agravada, o que não ocorreu, na hipótese dos autos.
Com efeito, no caso, o Recurso Especial não foi admitido, na origem, pela incidência da Súmula 282/STF. O agravo em recurso especial interposto, todavia, não impugnou o fundamento do decisum, motivo pelo qual não foi ele conhecido. A parte recorrente apresenta outras razões, deixando de impugnar, novamente, de modo específico, o fundamento da decisão ora agravada.
Deveria a parte agravante ter demonstrado, de modo claro e suficiente, que impugnara, especificamente, no Agravo em Recurso Especial, o fundamento que levou à inadmissão do Recurso Especial, em 2º Grau, omissão que ensejou a decisão ora agravada, que não conheceu daquele apelo. Entretanto, não o fez, o que atrai a incidência, uma vez mais, da Súmula 182/STJ.
Em verdade, renova-se o vício que comprometia o conhecimento do Agravo em Recurso Especial, agora, em sede de Agravo interno, impondo-se a reedição do juízo negativo de admissibilidade.
Desse modo, interposto Agravo interno com razões deficientes, que não impugnam, especificamente, os fundamentos da decisão agravada, devem ser aplicados, no particular, a Súmula 182 do STJ e o art. 1.021, § 1º, do CPC/2015.
Por fim, no caso, a multa, prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015, imposta, segundo entendimento firmado pela Segunda Turma desta Corte, foi no sentido de que o recurso que insiste em não atacar especificamente os fundamentos da decisão recorrida seguidamente é manifestamente inadmissível (dupla aplicação do art. 932, III, do CPC/2015), devendo ser penalizado com a multa prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015.
AREsp 1.751.847-SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO TRIBUTÁRIO
Não cabe agravo de instrumento em execuções fiscais cujo valor não supera cinquenta Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNS.
Na origem, trata-se de agravo de instrumento contra decisão que, em processo de execução fiscal, determinou a intimação da municipalidade para o recolhimento das despesas de citação postal, sob pena de extinção da ação executiva. No Tribunal a quo, não se conheceu do recurso.
O acórdão do Tribunal de origem não merece reforma, porquanto está em consonância com o desta Corte Superior, o qual entende não haver recurso para a segunda instância quando a importância executada for inferior ao valor de alçada, de modo que, estando o valor da execução abaixo do estipulado, haverá exceção ao duplo grau de jurisdição, seja para a Fazenda Pública, seja para o executado.
Por oportuno, confira-se: "(...) 1. A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias é regida pela Lei n. 6.830/1980 e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, conforme dispõe o art. 1º da referida Lei de Execução Fiscal. 2. O art. 34 da LEF estabelece o valor de alçada para eventual acesso ao segundo grau de jurisdição no montante de 50 (cinquenta) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs. 3. Em interpretação sistemática do regramento legal, conclui-se pelo não cabimento do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias na hipótese de a execução fiscal não alcançar o valor de alçada do art. 34 da Lei n. 6.830/1980, conforme antigo entendimento jurisprudencial sedimentado na Súmula 259 do ex-TFR.(...)" (AgInt no AREsp 1831509/SP, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 27/09/2021, DJe 07/10/2021).
REsp 1.990.221-SC, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 03/05/2022, DJe 13/05/2022.
DIREITO CIVIL
Contratos. Condição meramente potestativa. Cláusula que subordina a eficácia do negócio jurídico à vontade do credor. Validade.
É válida a condição suspensiva que subordina a eficácia do ato jurídico à vontade do credor, em função de um interesse juridicamente relevante no resultado de uma determinada ação judicial.
Os negócios jurídicos em geral podem ter sua eficácia subordinada a certos acontecimentos, por determinação da vontade do agente ou das partes, acontecimentos esses tradicionalmente classificados como "condições", "termos" e "modo/encargos".
Condições, de forma sintética, são as disposições acessórias estabelecidas voluntariamente pelas partes para subordinar total ou parcialmente a eficácia do ato/negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto. A condição é considerada potestativa quando depende da vontade de uma das partes, mas não exclusivamente do seu arbítrio.
O art. 115 do CC/1916, assim como o art. 122 do CC/2002 afirmam ser ilícita a condição que sujeita a eficácia do negócio jurídico ao puro arbítrio de uma das partes, interditando como defesas, em suma, as condições puramente potestativas.
Na leitura desses dispositivos legais, deve-se entender que o adjetivo "puro", inserido de forma expressa pelo legislador de 2002 ressalta que nem todas as condições potestativas são defesas, somente aquelas que sujeitarem o negócio jurídico ao "puro arbítrio de uma das partes".
Nesse sentido, a doutrina assinala que nem todas as condições potestativas são ilícitas. Somente aquelas cuja eficácia do negócio fique exclusivamente sob arbítrio de uma das partes, sem interferência de qualquer fator externo. Necessário, assim, identificar corretamente as condições puramente potestativas proibidas pelos arts. 115 e 122 do CPC/2015.
Elas podem ser identificadas, pelo uso de expressões como: "se eu quiser", "caso seja do interesse deste declarante", "se na data avençada, este declarante considerar-se em condições de prestar", etc. As condições puramente potestativas destacam-se pelo uso da cláusula si voluero que significa "se me aprouver", "se eu quiser".
Todas essas expressões, conforme se pode observar, fazem referência, de alguma forma, ao arbítrio do devedor, e não do credor. Todas elas, pelo seu próprio conteúdo semântico, põem em evidência uma falta de seriedade da obrigação assumida pelo devedor.
Somente quando o próprio devedor se reserva o direito de caprichosamente descumprir a obrigação assumida é que sobressai, de fato, o arbítrio da parte como elemento exclusivo para subordinar a eficácia do ato/negócio.
Isso só ocorre, porém, quando referida cláusula aproveitar ao devedor, pois quando aproveitar ao credor, todos os elementos necessários à configuração do negócio jurídico estarão presentes, sendo descabido falar em nulidade, inclusive em respeito ao princípio da boa-fé objetiva.
Uma coisa é o proprietário de determinado bem dizer a outrem - "vendo-lhe esse bem quando eu assim desejar". Outra coisa, bastante diversa é ele dizer: - "vendo-lhe esse bem quando você assim desejar". Existe uma diferença substancial quando alguém fala: - "eu faço quando eu quiser" e - "eu faço quando você pedir".
Na segunda situação, verifica-se apenas o estabelecimento de um termo incerto ou indeterminado, para referido cumprimento. Nesta hipótese, já estará firmado o liame obrigacional, não se podendo dispensar o devedor da prestação assumida por ele sem ofensa ao princípio da boa-fé objetiva. Afinal, se devedor concorda em oferecer a prestação se e no momento mais oportuno para o credor, não há motivo para censurar o ajuste entabulado apontando algum tipo de nulidade.
Ademais, não se pode considerar como puramente potestativa a condição que sujeita a eficácia do negócio à simples vontade da parte, mas em função de um interesse juridicamente relevante.
Assim, seja porque a condição suspensiva subordina a eficácia do negócio a uma manifestação de vontade do credor, seja, ainda, porque possivelmente faz-se isso em função de um interesse juridicamente relevante, não há motivo para considerá-la inválida.
REsp 1.984.277-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO CIVIL
É cabível revisão judicial de contrato de locação não residencial - empresa de coworking - com redução proporcional do valor dos aluguéis em razão de fato superveniente decorrente da pandemia da covid-19.
A controvérsia consiste em analisar se a situação decorrente da pandemia pela Covid-19 constitui fato superveniente apto à revisão judicial de contrato de locação não residencial, especialmente quanto a redução proporcional do valor dos alugueis, sendo a locatária uma empresa de coworking.
Deve-se ponderar, para a análise, sobretudo, os limites em torno da "onerosidade excessiva", concluindo-se que a onerosidade apta à revisão contratual deve ser relevante, de maneira a atingir a estrutura do negócio jurídico, ainda que nos contratos regidos pela legislação consumerista.
Há consenso doutrinário de que as relações contratuais privadas são regidas, em linha de princípio, por três vertentes revisionistas, quais sejam: a) teoria da base objetiva do contrato, aplicável, em regra às relações de consumo (art. 6º, inciso V, do CDC); b) a teoria da imprevisão (art. 317 do CC/2002); e c) a teoria da onerosidade excessiva (art. 478 do CC/2002).
Tais hipóteses, embora encontrem fundamento em contextos normativos diversos, estão vinculadas aos princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, diretrizes que ganham relevo, sobretudo, com as recentes alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019), ainda que, quanto às normas do CDC, haja certa divergência para sua aplicação.
É, portanto, a liberdade de contratar a regra, tendo a intervenção judicial cabimento apenas quando imprescindível ao restabelecimento do equilíbrio entre as partes.
Nesse rumo, cumpre traçar as principais distinções entre o instituto da quebra da base objetiva do negócio jurídico, aplicável sobretudo às relações de consumo (art. 6º, inciso V, do CDC), e os da imprevisão e da onerosidade excessiva, extraídos, respectivamente, dos arts. 317 e 478 do Código Civil.
Como requisito comum, sobressai a ocorrência de fato superveniente capaz de alterar, de maneira significativa (ou estrutural), o equilíbrio econômico e financeiro da avença, dela decorrendo situação de onerosidade excessiva.
São essas, em linha de princípio, as características da quebra da base objetiva do contrato, prevista no CDC, que destaca o desequilíbrio econômico e financeiro como requisito central.
Ao contrário, para a revisão do contrato com base nas teorias da imprevisão ou da onerosidade excessiva, previstas no CC/2002, exige-se ainda que o fato (superveniente) seja imprevisível e extraordinário e que dele, além do desequilíbrio econômico e financeiro, decorra situação de vantagem extrema para uma das partes, relacionando-se tal requisito, segundo parte da doutrina, à vedação do enriquecimento ilícito.
Em relação ao requisito da superveniência de fato imprevisível ou extraordinário - ponto importante para a distinção na adoção das teorias da imprevisão ou da quebra da base objetiva do negócio -, é inquestionável que a pandemia da Covid-19 adequa-se, com perfeição, às exigências referidas.
Nessa linha, para exame do caso em questão, destacam-se os seguintes pontos: a) a impossibilidade do exercício das atividades desenvolvidas pelo locatário em razão das medidas sanitárias do combate ao novo coronavírus; b) a redução do faturamento da locatária e c) a viabilidade da manutenção do contrato.
Conforme referido, o ramo empresarial desenvolvido pela locatária era uma empresa de coworking, cujo objetivo, linhas gerais, é o compartilhamento de espaço para empreendedores e empresas de pequeno porte. Ou seja, o coworking é um espaço físico que pode ser compartilhado por várias empresas ou profissionais liberais.
Embora não se conteste o efeito negativo decorrente da pandemia nos contratos de locação não residencial para ambas as partes, em que estas são efetivamente privadas, em maior ou menor extensão, seja em relação uso do bem ou mesmo à percepção dos rendimentos sobre o imóvel decorrentes do direito de propriedade, sobreveio desequilíbrio econômico-financeiro imoderado para a locatária.
Por certo, a locatária, a qual ficou privada por tempo determinado do exercício de suas atividades, manteve-se obrigada a cumprir a contraprestação pelo uso do imóvel pelo valor integral e originalmente firmado, quando as circunstâncias foram drasticamente alteradas, às quais, inclusive, acaso fossem conhecidas à época da contratação, poderiam levar ao estabelecimento de outros valores ou até mesmo à não contratação - situação que comporta, a intervenção no contrato a fim de que sejam restabelecidos os elementos econômico e financeiros das partes para que se adequem às novas condições.
E, nessa linha, a fixação de um período determinado para que as partes possam se adequar às condições (adversas) que lhes foram impostas, constitui medida salutar, capaz de promover a melhor composição para cada caso, especialmente quando a manutenção do contrato é viável, como no caso dos autos.
É cediço que a liberdade de contratar, embora exsurja como núcleo fundador das relações privadas, encontra limites nas regras da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, que, por sua vez, devem ser interpretadas de acordo com a natureza da relação jurídica firmada, autorizando-se, assim, em maior ou menor medida, a intervenção do Estado-Juiz como forma de restabelecer o equilíbrio entre as partes.
A diretriz da boa-fé, portanto, deveria ser observada, mormente porque os ônus suportados pelo locatário revelaram-se desmesurados.
Ademais, a situação da pandemia pode ser enquadrada como fortuito externo ao negócio, circunstância que exige a ponderação dos sacrifícios de cada parte na relação contratual.
Por fim, configura-se o desequilíbrio estrutural na relação entre as partes devido aos efeitos da pandemia pela Covid-19, assim como em razão das diretrizes da boa-fé e da função social do contrato, da equivalência material, da moderação e higidez das relações contratuais, impondo, portanto, a revisão do contrato.
REsp 1.785.404-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO CIVIL
A empresa arrendatária e possuidora indireta de aeronave acidentada é considerada responsável pelos danos provocados a terceiros em superfície advindos de sua queda.
A controvérsia consiste em definir a responsabilidade pelos danos morais causados pela queda de aeronave às vítimas em superfície, tendo em vista que o acidente com o avião danificou imóveis na área do choque com o solo, feriu e causou a morte de pessoas.
No caso, a ação de indenização por danos morais foi ajuizada em face da empresa apontada como arrendatária e exploradora da aeronave, nos termos previstos pelo Código Brasileiro de Aeronáutica. E também foi ajuizada em face de partido político, sob o argumento de que era o usuário exclusivo da aeronave, por meio de doação de horas de voo feitas em seu favor.
No que diz respeito ao transporte de pessoas, é certo que a teoria objetiva foi a eleita pelo ordenamento jurídico brasileiro, ao documentar no art. 734 do CC/2002 que o "transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Nesse particular, é manifesto: a responsabilidade objetiva imposta ao transportador tem fundamento no risco da atividade.
O Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) não evidencia de forma expressa a teoria objetiva como fundamento das responsabilidades que prevê. Todavia, a jurisprudência do STJ há muito reconheceu aquele embasamento para a responsabilidade atribuída às ocorrências do transporte aeroviário.
Outrossim, importante referir ainda que, no recente julgamento do REsp n. 1.414.803/SC já foi definido por esta Corte que "o Código Brasileiro de Aeronáutica não se limita a regulamentar apenas o transporte aéreo regular de passageiros, realizado por quem detém a respectiva concessão, mas todo serviço de exploração de aeronave, operado por pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, com ou sem fins lucrativos, de forma que [...] será plenamente aplicado, desde que a relação jurídica não esteja regida pelo CDC, cuja força normativa é extraída diretamente da CF/1988 (5º, XXXII)" (REsp n. 1.414.803/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 4/5/2021, DJe de 4/6/2021.).
Nesse passo, especificamente no que diz respeito aos fatos relacionados a terceiros em superfície, caso ora analisado, prevê o Código Brasileiro de Aeronáutica, em seu art. 268, que os exploradores da aeronave serão os responsáveis pelos danos criados àquelas pessoas.
Diante deste cenário, os danos sofridos por terceiros em superfície, causados diretamente pela atividade de transporte aéreo, serão de responsabilidade do explorador.
Nesse rumo, é possível extrair outra premissa, no sentido de que a responsabilidade pelo transporte aéreo é objetiva. Ou seja, independentemente de ter havido conduta culposa, se os danos indenizáveis decorrerem da atividade de transporte aéreo, haverá responsabilidade do explorador.
Nessa exata linha de ideias vai a legislação pertinente, que se revela no art. 123 do Código Brasileiro da Aeronáutica, na redação vigente à época dos fatos, conceituava operadores ou exploradores nos seguintes termos: "Art. 123. Considera-se operador ou explorador de aeronave: (...); II - o proprietário da aeronave ou quem a use diretamente ou através de seus prepostos, quando se tratar de serviços aéreos privados; III - (...); IV - o arrendatário que adquiriu a condução técnica da aeronave arrendada e a autoridade sobre a tripulação".
Em arremate, a doutrina esclarece que a exploração, nos casos acima referenciados, pode ocorrer independente do título de propriedade ou de posse, mediante qualquer forma lícita.
Com efeito, a empresa demandada, na qualidade de arrendatária e possuidora indireta da aeronave acidentada, nos termos do Código Brasileiro de Aeronáutica, é considerada exploradora e, nessa condição, responsável pelos danos provocados a terceiros em superfície.
O terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor.
Nessa ordem de ideias, acertada a incidência do universo consumerista à hipótese, deve ser invocada, notadamente, a teoria da aparência, pela qual se busca valorizar o estado de fato e reconhecer as circunstâncias efetivamente presentes nas relações jurídicas, concedendo proteção a terceiros de boa-fé (REsp n. 1.358.513/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 4/8/2020).
Dessarte, o raciocínio desenvolvido pretende fundamentar duas assertivas, que conferem ainda mais robustez à solução apresentada: 1ª) a teoria da aparência é fator legitimador do ajuizamento da ação de ressarcimento dos danos pelo defeito do serviço contra o aparente responsável, ainda que outros sujeitos houvessem de ser responsabilizados; 2ª) a responsabilidade pela prestação defeituosa do transporte aéreo, porque ancorada também nas normas de direito consumerista, será solidariamente repartida entre todos os fornecedores do serviço, no caso, todos os que se enquadrarem no conceito de explorador e, desde que tenha sido demandado.
Noutro ponto, acerca da atribuição de responsabilidade pelos danos ao partido político é certo que, juridicamente, nada mais era que o contratante do serviço de transporte aéreo, ainda que dito contrato não tenha sido oneroso.
Nessa ordem de raciocínio, esclarece a doutrina que o contrato de transporte aéreo é pacto bilateral, eis que gera obrigações para ambas as partes. A contratada tem como obrigação entregar o passageiro ou a carga em seu destino final com segurança e integralidade. Por outro lado, o contratante deve pagar por este serviço, porque, em regra, será oneroso. Todavia, nada impede a pactuação na modalidade gratuita, consoante, inclusive, o art. 256, § 2º, do Código Brasileiro de Aeronáutica.
REsp 1.984.282-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
O possuidor de aeronave acidentada é considerado explorador e, nessa condição, responsável pelos danos provocados aos a terceiros em superfície advindos de sua queda.
A controvérsia consiste em definir a responsabilidade pelos danos morais causados pela queda de aeronave às vítimas em superfície, tendo em vista que o acidente com o avião danificou imóveis na área do choque com o solo, feriu e causou a morte de pessoas.
A ação foi ajuizada em face indicados como proprietários da aeronave, cuja queda causou os danos que se pretende sejam ressarcidos. Em contestação, os réus alegaram sua ilegitimidade passiva, negando a qualidade de proprietários ou exploradores/operadores da aeronave. Ademais, requereram a denunciação à lide da empresa exploradora do serviço de transporte aéreo.
Todavia, os julgados ordinários chegaram às seguintes constatações: 1) a aeronave foi objeto de um contrato arrendamento mercantil; 2) os réus deste recurso tinham a posse da aeronave, quando do acidente, na qualidade de cessionários de direitos do arrendamento, não formalizado à época do acontecimento.
No que diz respeito ao transporte de pessoas, é certo que a teoria objetiva foi a eleita pelo ordenamento jurídico brasileiro, ao documentar no art. 734 do CC/2002 que o "transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Nesse particular, é manifesto: a responsabilidade objetiva imposta ao transportador tem fundamento no risco da atividade.
O Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) não evidencia de forma expressa a teoria objetiva como fundamento das responsabilidades que prevê. Todavia, a jurisprudência desta Casa há muito reconheceu aquele embasamento para a responsabilidade atribuída às ocorrências do transporte aeroviário.
Outrossim, importante referir ainda que, no recente julgamento do REsp n. 1.414.803/SC, já foi definido por esta Corte que "o Código Brasileiro de Aeronáutica não se limita a regulamentar apenas o transporte aéreo regular de passageiros, realizado por quem detém a respectiva concessão, mas todo serviço de exploração de aeronave, operado por pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, com ou sem fins lucrativos, de forma que [...] será plenamente aplicado, desde que a relação jurídica não esteja regida pelo CDC, cuja força normativa é extraída diretamente da CF/1988 (5º, XXXII)" (REsp n. 1.414.803/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 4/5/2021, DJe de 4/6/2021.).
Nesse passo, especificamente no que diz respeito aos fatos relacionados a terceiros em superfície, prevê o Código Brasileiro de Aeronáutica, em seu art. 268, que os exploradores da aeronave serão os responsáveis pelos danos criados àquelas pessoas.
Diante deste cenário, os danos sofridos por terceiros em superfície, causados diretamente pela atividade de transporte aéreo, serão de responsabilidade do explorador.
Nesse rumo, é possível extrair outra premissa, no sentido de que a responsabilidade pelo transporte aéreo é objetiva. Ou seja, independentemente de ter havido conduta culposa, se os danos indenizáveis decorrerem da atividade de transporte aéreo, haverá responsabilidade do explorador.
Nessa exata linha de ideias vai a legislação pertinente, que se revela no art. 123 do Código Brasileiro da Aeronáutica, na redação vigente à época dos fatos, conceituava operadores ou exploradores nos seguintes termos: "Art. 123. Considera-se operador ou explorador de aeronave: (...); II - o proprietário da aeronave ou quem a use diretamente ou através de seus prepostos, quando se tratar de serviços aéreos privados; III - (...); IV - o arrendatário que adquiriu a condução técnica da aeronave arrendada e a autoridade sobre a tripulação".
Em arremate, a doutrina esclarece que a exploração, nos casos acima referenciados, pode ocorrer independente do título de propriedade ou de posse, mediante qualquer forma lícita.
Na linha desse entendimento, como já assentado, sentença e acórdão, na descrição dos fatos e personagens neles envolvidos asseveraram de forma coincidente: 1) houve a contratação de arrendamento mercantil; 2) os réus deste recurso tinham a posse da aeronave, fruto da cessão de direitos do arrendamento, ainda não formalizada à época do acidente.
Com efeito, as partes na qualidade de possuidores da aeronave acidentada, nos termos do Código Brasileiro de Aeronáutica, são considerados exploradores e, nessa condição, responsáveis pelos danos provocados a terceiros em superfície.
O terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor.
Nessa ordem de ideias, acertada a incidência do universo consumerista à hipótese, deve ser invocada, notadamente, a teoria da aparência, pela qual se busca valorizar o estado de fato e reconhecer as circunstâncias efetivamente presentes nas relações jurídicas, concedendo proteção a terceiros de boa-fé (REsp n. 1.358.513/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 4/8/2020.)
Dessarte, o raciocínio desenvolvido pretende fundamentar duas modestas assertivas, que conferem ainda mais robustez à solução apresentada: 1ª) a teoria da aparência é fator legitimador do ajuizamento da ação de ressarcimento dos danos pelo defeito do serviço contra o aparente responsável, ainda que outros sujeitos houvessem de ser responsabilizados; 2ª) a responsabilidade pela prestação defeituosa do transporte aéreo, porque ancorada também nas normas de direito consumerista, será solidariamente repartida entre todos os fornecedores do serviço, no caso, todos os que se enquadrarem no conceito de explorador e, desde que tenha sido demandado.
Ademais, com base no segundo silogismo apresentado, não compete ao consumidor qualquer providência tendente a elucidar questões tais como a que se coloca sobre o contrato de arrendamento mercantil, se fora oficializado, a que forma e em que tempo. Muito menos caberia às vítimas dos danos provocados pela atividade aérea apurar os titulares da posse direta ou indireta da aeronave, por serem a parte vulnerável da relação jurídica, na acepção jurídica do vocábulo, lição comezinha de direito do consumidor.
Seguindo na análise da questão controvertida, defende-se a possibilidade da denunciação à lide, já que, perante os lesados todos devem responder solidariamente pelas consequências do fato. No entanto, observa que o CPC/2015, em seu art. 125, determina a obrigação de denunciação à lide daquele que está obrigado, por força de lei ou contrato, a indenizar o prejuízo do que perder a demanda. Portanto, não procede a alegação, também quanto a esse ponto.
Como de conhecimento, a denunciação da lide é intervenção de terceiros com natureza jurídica de ação, cuja pretensão está associada ao direito de regresso, não ensejando, porém, a formação de outro processo, e sim de duas demandas que serão decididas por uma mesma sentença. O mote de sua existência é justamente permitir, com arrimo no princípio da economia processual, que o titular do direito exerça, no mesmo processo em que demandado, a sua pretensão ressarcitória (ação de garantia). Por fim, relembre-se que o art. 88 do CDC veda expressamente a denunciação à lide nas ações derivadas de relações de consumo.
REsp 1.953.347-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 09/08/2022.
DIREITO CIVIL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Cessado o comodato, o condômino privado da posse do imóvel tem direito ao recebimento de indenização equivalente aos aluguéis proporcionais ao seu quinhão, dos proprietários que permaneceram na posse exclusiva do bem, os quais, caso não notificados extrajudicialmente, podem ser constituídos em mora por meio da citação nos autos da ação de arbitramento dos aluguéis.
Quanto ao dever de pagar aluguéis aos comodatários, a jurisprudência do STJ orienta que "se houve prévia estipulação do prazo do comodato, o advento do termo previsto implica, de imediato, no dever do comodatário de proceder à restituição da coisa. Não o fazendo, incorrerá o comodatário automaticamente em mora (mora 'ex re'). Sua posse sobre o bem, anteriormente justa em razão da relação jurídica obrigacional, converte-se em injusta e caracteriza esbulho possessório. [...] De outro turno, na ausência de ajuste acerca do prazo, o comodante, após o decurso de tempo razoável para a utilização da coisa, poderá promover a resilição unilateral do contrato e requerer a restituição do bem, constituindo o comodatário em mora mediante interpelação, judicial ou extrajudicial, na forma do art. 397, parágrafo único, do CC/02 (mora 'ex persona'). O esbulho possessório se caracterizará se o comodatário, devidamente cientificado da vontade do comodante, não promover a restituição do bem emprestado. [...] O comodatário constituído em mora, seja de forma automática no vencimento ou mediante interpelação, está submetido a dupla sanção, conforme prevê o art. 582, segunda parte, do CC. Por um lado, recairá sobre ele a responsabilidade irrestrita pelos riscos da deterioração ou perecimento do bem emprestado, ainda que decorrente de caso fortuito ou de força maior. Por outro, deverá o comodatário pagar, até a data da efetiva restituição, aluguel pela posse injusta da coisa, conforme arbitrado pelo comodante" (REsp 1.662.045/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/09/2017, DJe 14/09/2017).
A propósito, "a jurisprudência desta Corte Superior, alicerçada no art. 1.319 do Código Civil de 2002 (equivalente ao art. 627 do revogado Código Civil de 1916), assenta que a utilização ou a fruição da coisa comum indivisa com exclusividade por um dos coproprietários, impedindo o exercício de quaisquer dos atributos da propriedade pelos demais consortes, enseja o pagamento de indenização àqueles que foram privados do regular domínio sobre o bem, tal como o percebimento de aluguéis" (REsp 1.966.556/SP, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe 17/02/2022).
E ainda, "o pagamento de aluguéis não envolve discussão acerca da licitude ou ilicitude da conduta do ocupante. O ressarcimento é devido por força da determinação legal segundo a qual a ninguém é dado enriquecer sem causa à custa de outrem, usufruindo de bem alheio sem contraprestação" (REsp 1.613.613/RJ, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/06/2018, DJe 18/06/2018).
Portanto, na linha dos precedentes antes citados, cessado o comodato, por meio de notificação judicial ou extrajudicial, o condômino privado da posse do imóvel tem direito ao recebimento de indenização equivalente aos aluguéis proporcionais ao seu quinhão, devida pelos proprietários e comodatários que permaneceram na posse exclusiva do bem, medida necessária para evitar o enriquecimento sem causa da parte que usufrui da coisa.
Sobre a forma de constituição em mora do comodatário e quanto ao termo inicial de apuração do pagamento, o entendimento desta Corte Superior, em se tratando de "comodato precário - isto é, sem termo certo - [...] a constituição do devedor em mora reclamará, no caso, a prévia notificação judicial ou extrajudicial (mora 'ex persona'), com a estipulação de prazo razoável para a restituição da coisa, cuja inobservância implicará a caracterização do esbulho autorizador do interdito possessório" (REsp 1.327.627/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 01/12/2016).
No entanto, "nos termos da jurisprudência desta Corte, a citação pode ser admitida como sucedâneo da interpelação para fins de constituição do devedor em mora" (AgRg no AREsp 652.630/SC, Relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 06/11/2015).
Nesse contexto, em relação ao termo inicial do arbitramento dos aluguéis, no comodato precário, em regra, "o marco temporal para o cômputo do período a ser indenizado (...), é a data da citação para a ação judicial de arbitramento de aluguéis, ocasião em que se configura a extinção do comodato gratuito que antes vigorava" (REsp 1.375.271/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/09/2017, DJe 02/10/2017).
Na espécie, o Juiz de primeiro grau fixou o início do pagamento dos aluguéis na data da citação, conclusão ratificada pelo Tribunal de origem, o que encontra amparo na jurisprudência do STJ, pois, inexistindo notificação extrajudicial dos condôminos que usufruem com exclusividade o imóvel comum, a constituição em mora poderá ocorrer pela citação nos autos da ação de arbitramento, momento a partir do qual a contraprestação é devida.
REsp 1.966.032-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO DO CONSUMIDOR
A empresa aérea que disponibilizar a opção de resgate de passagens aéreas com "pontos" pela internet é obrigada a assegurar que o cancelamento ou reembolso dessas seja solicitado pelo mesmo meio.
A controvérsia recursal consiste em analisar se a empresa aérea que disponibiliza a opção de resgate de passagens aéreas com "pontos" pela internet, é obrigada a oferecer a mesma funcionalidade nos casos de cancelamento e reembolso das passagens.
Os programas de fidelidade, contudo, não dispõem de previsão normativa específica no ordenamento jurídico.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a natureza da relação jurídica no caso concreto é que definirá o regramento legal a ser aplicado.
Assim, tendo em vista que se sobressai o debate acerca da conduta da companhia na emissão/resgate de passagens, está configurada a relação de consumo entre os envolvidos, companhia aérea e consumidores, nos exatos termos da previsão dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor.
Com efeito, após a pontuação obtida pelo aderente do programa, é a empresa área que emite as passagens. Por sua vez, o gerenciamento dos bilhetes, tanto para a emissão, alteração ou cancelamento é realizado pela própria companhia, seja por meio de seu call center, em suas lojas físicas ou pela sua página na internet (nos casos de alteração e emissão). Embora o programa de fidelidade não seja ofertado aos seus clientes de maneira onerosa, não se dúvida que proporciona a lucratividade da empresa pela adesão dos consumidores ao programa.
No caso, a conduta da empresa aérea revelou-se abusiva, nos termos do art. 39, inciso V, do CDC. Isso porque, sob a alegação de que seria prática negocial, inerente às escolhas e prática de comércio, ela, muito embora tenha envidado esforços para implementar a opção do resgate de passagens aéreas obtidas pelo programa de milhagens em sua plataforma digital - prática, de fato, que nem sequer estaria obrigada a adotar -, assim não o fez quanto à opção de cancelamento. Ou seja, inseriu no mercado prática facilitadora para ao resgate de passagem aérea, mas, em contrapartida, não disponibilizou a funcionalidade para as hipóteses de cancelamento.
A conduta, além de se revelar contraditória e desprovida de fundamento técnico ou mesmo econômico, como se poderia cogitar, impunha ônus excessivo ao consumidor, na medida em que este teria que se deslocar às lojas físicas da empresa (e apenas aquelas localizadas nos aeroportos) ou utilizar o call center, medidas indiscutivelmente menos efetivas quando comparadas ao meio eletrônico.
Disso se conclui que a conduta serviria mesmo como um desestímulo ao consumidor no caso do cancelamento da passagem adquirida pelo programa de fidelidade e, assim, reaver os pontos utilizados para a compra - situação que geraria, por outro lado, vantagem ao fornecedor.
A adoção da medida - oferecer a mesma funcionalidade nos casos de cancelamento e reembolso das passagens - não decorre de ingerência desmotivada na atividade empresarial, mas sim, da necessidade de observância a um comportamento coerente pela companhia aérea e que não cause danos ou inconvenientes aos consumidores.
A conduta abusiva da companhia, portanto, revela-se dissociada da boa-fé que deve reger todas as relações jurídicas privadas, e não apenas aquelas sob os influxos do CDC.
Na linha do que já se afirmou, é sabido que o abuso do direito se caracteriza sempre que identificada determinada ação pelo seu titular, que ultrapassa os limites do direito que lhe foi concedido e, nessa esteira, ofende o ordenamento, acarretando um resultado ilícito. "O abuso ocorre sempre que, aparentemente usando de um direito regular, haja uma distorção do mesmo, por um 'desvio de finalidade', de modo a prejudicar a outra parte interessada ou a terceiros".
Sobressai, assim, a exegese de que os direitos do consumidor e a livre iniciativa não são, em linha de princípio, excludentes, devendo, na verdade, ser conciliados, na busca de uma solução que atenda a ambos, num cenário em que os abusos não têm espaço.
Nessa linha, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido da inviabilidade de se valer do princípio da livre iniciativa para afastar as normas protetivas de defesa do consumidor, com base na premissa de que ambos os interesses jurídicos são relevantes e devem concordar entre si.
Assim, não se pode extrair legitimidade na prática comercial adotada, impondo-se à companhia, portanto, que implemente a ferramenta para os casos de cancelamento das passagens aéreas adquiridas com pontos.
REsp 1.785.467-SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 02/08/2022, DJe 16/08/2022.
DIREITO EMPRESARIAL, RECUPERAÇÃO JUDICIAL
É possível, por deliberação da Assembleia Geral de Credores, a aplicação do limite previsto no art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005 às empresas em recuperação judicial, desde que devida e expressamente previsto pelo plano de recuperação judicial, instrumento adequado para dispor sobre forma de pagamento das dívidas da empresa em soerguimento.
Consoante entendimento firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1.649.774/SP, a limitação prevista no art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005 não tem aplicação automática na recuperação judicial, cabendo às recuperandas e aos credores da respectiva classe, segundo critérios e quorum definidos em lei, deliberarem sobre o estabelecimento de um patamar máximo para o tratamento preferencial dos créditos trabalhistas, isto é, somente incidirá a limitação do art. 83, I, da Lei de Falências e Recuperação Judicial caso haja previsão expressa no respectivo plano de recuperação.
A Quarta Turma desta Corte adotou o mesmo posicionamento no julgamento do REsp 1.812.143/MT, de relatoria do Ministro Marco Buzzi (DJe de 17/11/2021), firmando o entendimento de que, nos casos em que se busca a habilitação em recuperação judicial de honorários advocatícios de elevado valor - crédito trabalhista por equiparação -, é possível a aplicação do limite previsto no art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005 desde que deliberado pela assembleia-geral de credores e expressamente previsto no plano recuperacional.
REsp 1.785.467-SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 02/08/2022, DJe 16/08/2022.
DIREITO EMPRESARIAL, RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Os créditos resultantes de honorários advocatícios têm natureza alimentar e equiparam-se aos trabalhistas para efeito de habilitação em falência ou recuperação judicial.
Cinge-se a controvérsia em definir a classificação dos créditos oriundos de honorários advocatícios de sucumbência, para fins de habilitação na recuperação judicial.
Quanto ao ponto, o Tribunal de origem manteve a classificação determinada pela decisão de primeiro grau agravada - crédito com privilégio geral, aplicando o entendimento de que o crédito perseguido por sociedade de advogados não se equipara aos créditos trabalhistas porque não são exclusivamente vertidos à subsistência dos advogados, mas administrados em benefício da sociedade de advogados.
Contudo, em juízo de retratação (art. 543-C, § 7º, II, do CPC/73, atual art. 1.040, II, do CPC/2015) em razão do julgamento do REsp 1.152.218/RS (Tema 637 dos recursos repetitivos), o Tribunal a quo alterou seu entendimento para concluir pela equiparação do crédito perseguido pelas recorridas aos créditos trabalhistas.
Por ocasião do julgamento do mencionado recurso repetitivo, esta Corte Superior firmou o entendimento de que os créditos resultantes de honorários advocatícios ostentam os mesmos privilégios legais dados aos créditos trabalhistas, especificamente aqueles previstos na Lei n. 11.101/2005, inclusive em caso de recuperação judicial.
Assim, a qualificação dos créditos em classes de credores, conforme a ordem de preferência legal, possui tratamento único, seja na falência ou na recuperação judicial.
De igual modo, o STJ, também no julgamento do referido REsp 1.649.774/SP, já se manifestou no sentido de que o fato de os créditos serem titularizados por sociedade de advogados não afasta sua natureza alimentar, uma vez que a remuneração pelo trabalho desenvolvido pelos advogados organizados em sociedade também se destina à subsistência de cada um dos causídicos integrantes da banca e de suas famílias.
Ainda, consoante entendimento desta Corte, os honorários advocatícios, sejam contratuais ou sucumbenciais, possuem natureza alimentar para fins de habilitação em falência e recuperação judicial, conforme previsto no art. 85, § 14, do CPC/2015.
RHC 168.440-MT, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
O peticionamento nos autos por advogado destituído de poderes especiais para receber citação não configura comparecimento espontâneo apto a suprir tal necessidade.
Cumpre salientar, inicialmente, que o art. 251, III, do CPC/2015, preceitua que "incumbe ao oficial de justiça procurar o citando e, onde o encontrar, citá-lo, obtendo a nota de ciente ou certificando que o citando não a apôs no mandado". Justamente por ser essencial à existência do processo judicial, o ato citatório deve ser cumprido, em regra, com a observância da estrita forma prevista em lei - especialmente na execução de alimentos, cuja consequência pode ser a prisão civil -, a fim de que não haja dúvida acerca da ciência inequívoca do executado de que há contra ele uma pretensão deduzida por outrem.
Ocorre, que, em que pese o acórdão de origem, ao reconhecer a citação do executado ao argumento de que ele tinha ciência da execução porque compareceu espontaneamente aos autos, deixou de observar que a procuração juntada aos autos não conferia poderes especiais ao causídico para receber citações/intimações.
Com efeito, ao julgar os EREsp 1.709.915/CE, a Corte Especial consolidou o entendimento de que, em regra, o peticionamento nos autos por advogado destituído de poderes especiais para receber citação não configura comparecimento espontâneo apto a suprir tal necessidade.
Portanto, com base no princípio da instrumentalidade das formas, o comparecimento de advogado com o escopo de juntar procurações somente tem o condão de configurar comparecimento espontâneo se houver, na procuração, poderes específicos para receber citação, ou para atuação específica naquele processo, o que não ocorreu no caso em tela.
HC 557.224-PR, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022, DJe 19/08/2022.
DIREITO PENAL
No concurso entre agravantes e atenuantes, a atenuante da confissão espontânea deve preponderar sobre a agravante da dissimulação, nos termos do art. 67 do Código Penal.
O art. 67 do Código Penal determina que "no concurso de agravante e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência".
Esta Corte Superior entende que a confissão espontânea é circunstância preponderante, e a agravante da dissimulação não está prevista como circunstância preponderante por não se encaixar nos quesitos previstos no art. 67 do Código Penal. Assim, a reprimenda deve ser reduzida na segunda fase da dosimetria.
No caso, a Corte de origem, a despeito de considerar que não caberia a preponderância da agravante da dissimulação sobre a atenuante da confissão, ainda que qualificada, concluiu que deveriam ser compensadas a agravante da dissimulação com a atenuante da confissão espontânea. Contudo, tal entendimento destoa do art. 67 do Código Penal.
Tendo a pena-base sido fixada e mantida em 14 anos de reclusão, impõe-se a sua redução em 1/12 (um doze avos), na segunda fase da dosimetria, pela preponderância da atenuante da confissão espontânea sobre a agravante da dissimulação, restando a sanção intermediária em 12 anos e 10 meses de reclusão, a qual, à míngua de outras causas modificativas, torna-se definitiva.
HC 735.519-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
A inquirição de testemunhas diretamente pelo magistrado que assume o protagonismo na audiência de instrução e julgamento viola o art. 212 do CPP.
Inicialmente, registre-se que, conforme reiterada jurisprudência dos Tribunais Superiores, o reconhecimento de vício que possibilite a anulação de ato processual exige a efetiva demonstração de prejuízo ao acusado, consoante o previsto no art. 563, do Código de Processo Penal (pas de nullité sans grief) - (RHC n. 154.359/RJ, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 07/06/2022, DJe de 23/06/2022).
Na instrução processual, a inquirição da testemunha deverá ser feita a partir de perguntas formuladas diretamente pelas partes, podendo o Juiz completar a inquirição, em relação aos pontos não esclarecidos (art. 212 do CPP).
No caso, verifica-se que, na audiência de instrução e julgamento, a inquirição das testemunhas foi protagonizada pela magistrada, que formulou a maioria das perguntas, tendo a defesa realizado questionamentos e a representante do Ministério Público abstendo-se de inquirir as testemunhas, vítima ou acusado, mesmo diante da impugnação da defesa.
Assim, evidenciado que a magistrada assumiu o protagonismo na inquirição de testemunhas e, por consequência, patente a violação ao art. 212 do CPP. Tendo a prova sido produzida irregularmente, presumido o prejuízo sofrido pela defesa do paciente, uma vez que é inviável avaliar a instrução processual se o juízo de origem tivesse obedecido ao dispositivo tido por violado.