ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ESCOLA PREPARATÓRIA DE CADETES DO AR. VAGAS RESERVADAS A CANDIDATOS NEGROS. AUTODECLARAÇÃO DO IMPETRANTE NÃO HOMOLOGADA PELA COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. ELIMINAÇÃO DO CERTAME, INCLUSIVE EM RELAÇÃO ÀS VAGAS DE AMPLA CONCORRÊNCIA. AFERIÇÃO DE LEGALIDADE DE CLÁUSULAS EDITALÍCIAS PELO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. CASO CONCRETO. ILEGALIDADE CARACTERIZADA. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ART. 2º, CAPUT, § 3º, C/C O ART. 3º, AMBOS DA LEI N. 12.990/1994.
1. Cuida-se, na origem, de mandado de segurança impetrado contra indigitado ato ilegal atribuído ao Presidente da Comissão de Heteroidentificação Complementar da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), que, no âmbito do processo seletivo destinado ao ingresso naquela instituição militar de ensino, para o ano de 2020, não homologou sua autodeclaração como pessoa negra (preta ou parda), para fins de concorrer às vagas destinadas a afrodescendentes, eliminando-o do certame, apesar de também ter sido classificado dentro das vagas destinadas à ampla concorrência.
2. O pedido de liminar foi deferido pelo Juízo de primeiro grau, que, posteriormente, após regular processamento do feito, concedeu a segurança pleiteada.
3. A sentença concessiva do mandamus foi reformada pelo Tribunal de origem sob a compreensão de que, reconhecida a falsidade da autodeclaração do candidato, sua eliminação do certame se impõe, independentemente de integrar a lista de classificados nas vagas destinadas à ampla concorrência, em virtude de expressa previsão editalícia que, outrossim, estaria em harmonia com as disposições contidas nos arts. 2º e 3º da Lei n. 12.990/2014.
4. Ao Poder Judiciário é permitido apreciar a eventual ilegalidade de cláusulas editalícias. Nesse sentido: AgInt no AREsp n. 1.414.536/SP, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 3/8/2020; REsp n. 730.934/DF, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe de 22/8/2011; AgRg no RMS n. 32.582/PB, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, Segunda Turma, DJe de 12/5/2011; e EDcl no REsp n. 824.299/RS, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJe de 2/6/2008.
5. Segundo comezinhos princípios hermenêuticos, os parágrafos e incisos devem ser interpretados conforme o caput do artigo ao qual se vinculam. A propósito, mutatis mutandis: REsp n. 1.616.231/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 16/6/2017;
EDcl no AgRg no AgRg no Ag n. 1.078.344/MG, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe de 1º/2/2010; e REsp n. 443.968/PR, relator Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ de 18/8/2006.
6. A partir da interpretação sistemática dos arts. 2º, caput, e 3º, ambos da Lei n. 12.990/2014, conclui-se que a sanção contida no parágrafo único do referido art. 2º - eliminação do candidato que prestar declaração falsa acerca de sua condição de pessoa negra - se restringe à disputa pelas vagas reservadas, não alcançando o certame referente às vagas destinadas à ampla concorrência.
7. O item 2.4.6 do Edital do certame em tela, que se encontra reproduzido no acórdão recorrido ("Serão eliminados do concurso público os candidatos cujas autodeclarações não forem confirmadas em procedimento de heteroidentificação, ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independentemente de alegação de boa-fé, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis."), deve ser interpretado em harmonia com a regra do art. 2º, caput, parágrafo único, da Lei n. 12.990/2014, no sentido de que a não homologação da autodeclaração do candidato implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas.
8. Diante do silêncio existente na Lei n. 12.990/2014, é licito associar-se a declaração falsa ali referida à ideia de falsidade ideológica, que traz em si a necessidade de existência de má-fé, que, por sua vez, não pode ser presumida. A respeito, os seguintes julgados: AgRg no HC n. 867.521/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe de 29/2/2024; AgInt no AREsp n. 2.241.818/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 18/8/2023; AgRg no RMS n. 37.982/RO, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe de 20/8/2013.
9. À luz do princípio da razoabilidade como equidade, não há como se desconsiderar a subjetividade das classificações raciais e, desse modo, a natural possibilidade de divergência de opiniões diante de dada situação concreta, quando uma comissão de heteroidentificação é chamada para classificar racialmente dado candidato.
10. De igual modo, tomando-se o princípio da razoabilidade como congruência, a não homologação de uma autodeclaração não imputa a esta, de forma automática, a pecha de falsa, sob pena, inclusive, de se estar a presumir a má-fé do candidato.
11. Hipótese em que, do voto condutor do acórdão recorrido, extrai-se a informação de que a Banca Examinadora se limitou a não confirmar a autodeclaração do ora recorrente, sem qualquer indicação de que pudesse ter havido má-fé.
12. Recurso especial conhecido e provido para reformar o acórdão recorrido, com o restabelecimento da sentença que concedeu a segurança.