RHC 45743
Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR
02/06/2014
RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 45.743 - RJ (2014/0044644-4)
DECISÃO
Trata-se de recurso interposto por Artur Rocha de Souza contra acórdão proferido pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que denegou o HC n. 0063228-90.2013.8.19.0000.
Nos autos do Processo n. 0046528-36.2013.8.19.001, o recorrente foi denunciado pela suposta prática da conduta tipificada no art. 147 do Código Penal (crime de ameaça), na incidência da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), por ter ameaçado sua ex-namorada e a mãe dela.
Após pagamento de fiança, foi-lhe concedido o direito de responder ao processo em liberdade.
Com a alegação de incompetência do I Juizado da Violência Doméstica e Familiar da comarca do Rio de Janeiro para o julgamento da causa, ajuizou-se na origem habeas corpus, requerendo-se, em caráter liminar, a suspensão da ação penal e, em caráter definitivo, a anulação do processo em razão da incompetência absoluta ou, alternativamente, a anulação apenas em relação à Sra. Lúcia Helena Cavalcanti, desmembrando-se o feito, com remessa ao juizado especial criminal, diante da evidente ausência vínculo doméstico e afetivo relativamente a esta pessoa.
O Tribunal fluminense denegou a ordem nos termos desta ementa (fls. 52/57):
AÇÃO CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE AMEAÇA PRATICADO EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER (ARTIGO 147 (2X) DO CÓDIGO PENAL, C/C LEI Nº 11.340/2006). ALEGADA INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER PARA O CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. DENEGAÇÃO DA ORDEM.
1. A preliminar de não conhecimento merece ser refutada, uma vez que o que se alega incompetência do juízo é questão que pode ser aferida de plano, em análise perfunctória e que, caso caracterizada, traz risco ao direito ambulatorial do paciente, além de ofensa ao devido processo legal constitucional. Assim, a despeito de a arguição de incompetência não ter sido veiculada pela via processual adequada, conhece-se da impetração.
2. No mérito, contudo, não assiste razão ao impetrante. De acordo com as informações prestadas pela autoridade impetrada e o andamento processual colhido do sítio eletrônico do Tribunal de Justiça, não existe qualquer ilegalidade a ser sanada pela via da impetração.
3. A denúncia ofertada contra o paciente narra ameaças que teriam sido praticadas contra a ex-namorada e a ex-sogra, caracterizando-se a violência doméstica.
4. Como bem asseverou a própria autoridade impetrada, o conceito de violência doméstica prescinde de coabitação e caracteriza-se pela relação íntima de afeto, havendo vasta jurisprudência acerca do tema, inclusive quanto a ex-namorados.
5. No que concerne ao pleito subsidiário de desmembramento do feito em relação à vítima, ex-sogra, com seu processamento no Juizado Especial Criminal Comum, não merece acolhimento, seja porque os fatos também estão abarcados pela incidência da Lei Maria da Penha, uma vez que praticados com menoscabo do gênero feminino e prevalecendo-se da intimidade decorrente da relação de afeto havida com a outra vítima, seja porque há evidente conexão fático-probatória a recomendar o processamento conjunto do feito.
6. No que concerne ao pleito subsidiário de desmembramento do feito em relação à vítima, ex-sogra, com seu processamento no Juizado Especial Criminal Comum, não merece acolhimento, seja porque os fatos também estão abarcados pela incidência da Lei Maria da Penha, uma vez que praticados com menoscabo do gênero feminino e prevalecendo-se da intimidade decorrente da relação de afeto havida com a outra vítima, seja porque há evidente conexão fático-probatória a recomendar o processamento conjunto do feito.
7. Por fim, saliente-se que na AIJ realizada no último dia 27 de janeiro de 2014, conforme informações constantes do sítio eletrônico do Tribunal de Justiça, o paciente, voluntariamente, reconheceu a paternidade da filha da vítima, afastando, por completo, a alegação lançada em sustentação oral, no sentido de que se tratava apenas de uma "relação fugaz".
DENEGAÇÃO DA ORDEM.
Sobreveio, daí, o presente recurso no qual se alega a não ocorrência de violência baseada no gênero, a descaracterização da relação de afetividade estável, a ausência do caráter de hipossuficiência e de vulnerabilidade da mulher, a falta do vínculo de natureza doméstica ou familiar.
Para o recorrente, simples relações sexuais que se prolongam durante alguns meses não implicam em vínculo doméstico ou familiar, ainda que deles provenha "acidental" geração de prole (fl. 83).
Assim, o processo deve ser anulado ab initio e remetido ao juizado especial criminal do local do fato para seu regular prosseguimento, por se tratar de crime de menor potencial ofensivo, já que a acusação não se lastreia em episódio de violência de gênero (fl. 81).
Sem contrarrazões, tendo em vista o contido no ofício GAB/SUB-ASJUR n. 139/2005, no qual a Procuradoria-Geral de Justiça noticia a desnecessidade da sua intervenção nos recursos ordinários em habeas corpus.
Admitido o recurso na origem, os autos foram encaminhados ao Ministério Público Federal, tão logo chegaram ao Superior Tribunal de Justiça.
O parecer do Subprocurador-Geral da República Carlos Frederico Santos foi assim resumido (fl. 238):
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. AMEAÇA CONTRA EX-NAMORADA.
PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE MEDIANTE FIANÇA. ART. 147 DO CP NA INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO.
COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. INCOMPETÊNCIA (ART. 41 DA LEI Nº 11.340/06). CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURAÇÃO.
- Quaisquer agressões (sejam físicas, sexuais ou psicológicas) cometidas contra mulher em decorrência de relação íntima de afeto, mesmo que se trate de simples namoro, caracterizam-se violência doméstica ou familiar, atraindo os rigores da Lei nº 11.340/06, ainda que agressor e vítima não tenham coabitado. Precedentes.
- Não se aplica a Lei nº 9.099/95 aos crimes cometidos com violência doméstica ou familiar (art. 41 da Lei Maria da Penha). Precedentes.
- Parecer pelo não provimento do recurso ordinário.
É o relatório.
Eis a opinião do Ministério Público Federal (fls. 240/243):
[...] 9. O recurso merece ser conhecido, no entanto não comporta provimento, consoante as razões a seguir expendidas.
10. Ab initio, insta consignar que a conduta praticada pelo recorrente insere-se no contexto de violência doméstica, bastante a atrair os rigores da Lei Maria da Penha, além do art. 147 do Código Penal.
Em que pese os argumentos do recorrente, consistentes na ausência de violência doméstica e familiar, pelo fato de o agressor e a vítima não coabitarem e terem mantido apenas uma fugaz e efêmera relação de namoro, verifica-se, em sentido diverso, que a incidência da Lei nº 11.340/2006 à espécie decorre de inequívoca existência de relação íntima de afeto entre o ofensor e a ofendida (inserindo-se, no contexto familiar, a relação com a mãe da ex-namorada do agressor), tanto que dessa relação adveio uma criança, cuja paternidade fora espontaneamente reconhecida pelo recorrente, prescindindo-se da coabitação para a caracterização da convivência familiar.
11. No tocante ao pleito de desmembramento do processo relativamente à mãe da ex-namorada do recorrente, direcionando seu processamento para o competente juizado especial criminal, consoante bem consignou o voto condutor do acórdão objurgado, tal pedido com efeito não merece ser acolhido, seja porque os fatos também estão abarcados pela incidência da Lei Maria da Penha, uma vez que praticados com menoscabo do gênero feminino e prevalecendo-se da intimidade decorrente da relação de afeto havida com a outra vítima, seja porque há evidente conexão fático-probatória a recomendar o processamento conjunto do feito.
A esse respeito, cumpre acrescentar que o art. 41 da Lei Maria da Penha estabelece que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Acerca dos argumentos supra-expostos veja-se os seguintes arestos emanados desta Augusta Corte Superior de Justiça, verbis:
HABEAS CORPUS. PENAL. LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA PRATICADA EM DESFAVOR DE EX-NAMORADA. CONDUTA CRIMINOSA VINCULADA À RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR.
CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 41 DA LEI 11.340/06. VEDAÇÃO LEGAL.
IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO.
1. A Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, analisando o tema em voga, vem manifestando seu entendimento jurisprudencial no sentido da configuração de violência doméstica contra a mulher, ensejando a aplicação da Lei nº 11.340/06, à agressão cometida por ex-namorado.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido da inaplicabilidade da Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar, em razão do disposto no art. 41 da Lei n.º 11.340/06. In casu, por expressa vedação legal, não pode ser concedida a suspensão condicional do processo.
3. Ordem denegada.
(HC 182.411/RS, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 14/08/2012, DJe 03/09/2012). [g.n.].
PENAL. HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. EX-NAMORADOS.
APLICABILIDADE. INSTITUTOS DESPENALIZADORES. LEI N.º 9.099/95. ART. 41. CONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO PLENÁRIO DO STF.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA.
I. A Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento jurisprudencial no sentido da configuração de violência doméstica contra a mulher, ensejando a aplicação da Lei nº 11.340/2006, a agressão cometida por ex-namorado.
II. Em tais circunstâncias, há o pressuposto de uma relação íntima de afeto a ser protegida, por ocasião do anterior convívio do agressor com a vítima, ainda que não tenham coabitado.
III. A constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha foi declarada no dia 24.03.2011, à unanimidade de votos, pelo Plenário do STF, afastando de uma vez por todas quaisquer questionamentos quanto à não aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei n.º 9.099/95.
IV. Ordem denegada.
(HC 181.217/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 20/10/2011, DJe 04/11/2011). [g.n.].
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E CONVIVÊNCIA INDEPENDENTE DE COABITAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL.
1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação.
2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica.
3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles casos concretos, a agressão não decorria do namoro.
4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.
5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete-MG.
(CC 96.532/MG, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe 19/12/2008).
[g.n.].
Com base nos argumentos e precedentes externados, não se vislumbra, na espécie, qualquer constrangimento ilegal a demandar solução pela via do remédio heroico.
III 12. Posto isso, opina o Ministério Público Federal pelo conhecimento e não provimento do recurso ordinário.
Estou de pleno acordo com o parecer ministerial.
Realmente como destacou a Ministra Jane Silva (Desembar- gadora convocada do TJ/MG) num dos precedentes mencionados pelo Subprocurador-Geral da República , não se trata de saber se a relação do casal caracterizou união estável ou não, se o relacionamento já cessou ou não, basta que os elementos apontem para a direção de que ambos, em determinado momento, por vontade própria, ainda que esporadicamente, tenham tido relação de afeto, independente de coabitação. A lei não exige esforço de interpretação para essa conclusão, pelo contrário, ela é expressa, não deixa margem de dúvidas. Isso porque, seu escopo de proteção às mulheres, constantemente vítimas de agressões em suas relações domésticas e familiares, gira em torno de algo maior do que o casamento ou uma possível união estável, ele gira em torno da necessidade de resguardo daquela que é colocada em situação de fragilidade frente ao homem em decorrência de qualquer relação íntima que do convívio resulta. Aquele que namorou por vontade própria expressa, independentemente do tempo, manteve, por óbvio, vínculo íntimo de afeto com a namorada, ainda que com ela não tenha coabitado ou que da relação não tenha resultado união estável.
Além disso conforme consta do voto da Ministra Cármen Lúcia no RHC n. 112.698/RS , a condição de hipossuficiência da vítima está implícita em todos os casos de violência doméstica e familiar previstos em lei. Assim, a agressão do namorado contra a namorada, mesmo cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, está inserida na hipótese do art. 5º, III, da Lei n. 11.340/06, caracterizando a violência doméstica.
Correta também a conclusão do Tribunal local que aqui encontra respaldo na opinião do Ministério Público Federal quanto à impossibilidade desmembramento do feito, pois, ao lado de a ação ter ocorrido com menoscabo do gênero feminino e prevalecendo-se da intimidade decorrente da relação de afeto havida com a outra vítima está o fato de existir evidente conexão fático-probatória a recomendar o processamento conjunto do feito.
Pelo exposto, com base nos precedentes e no parecer, à míngua de constrangimento ilegal a ser reparado, nego seguimento ao presente recurso (arts. 557, caput, e 3º, dos Códigos de Processo Civil e Penal).
Publique-se.
Brasília, 29 de maio de 2014.
Ministro Sebastião Reis Júnior Relator